Um texto
sobre uma foto e uma foto sobre um frame, e aí
Jordana se senta:
as mãos esparramadas para trás, as pernas
sobre o banco, dobradas e cruzadas. Acima, milhares de bandeirinhas dançam
com o vento a cruzar cada uma delas, farfalhando como folhas antes da
tempestade e produzindo um som que àquela hora inicial da noite soa confortável
aos nossos ouvidos. Suas infinitas cores sobre nós quase formam uma estranho
arco-íris noturno, um arco-íris a louvar os santos festeiros, doceiros e
comilões do mês de junho.
Minhas mãos estão cansadas, fruto de uma tarde
inteira carregando cadeiras & mesas & panelas & gelo & isopor
& esticando cordinhas & amarrando bandeirinhas coloridas & subindo
em escadas & pregando chapéus de caipiras nas paredes & nos cantos mais
improváveis do espaço do condomínio.
Sento no chão.
Jordana está sorrindo.
– Tá sentindo o cheiro da comida? – Pergunta ela,
soltando os cabelos que caem sobre os ombros e escondem, por um segundo, as
manchinhas que repousam ali.
– Tô sim.
Ela fecha os olhos e inclina a cabeça
levemente para trás, num ângulo quase imperceptível, quase nada visível e quase
pouco a demonstrar o prazer corporal que o aroma da culinária junina causa no
corpo.
– É hoje que eu vou encher a porra do bucho,
Fê.
“Encher o bucho” era a frase dela.
(encher o
bucho™)
– Eu também vou – respondo, igualmente
empolgado.
– Vou encher até o buraco do cu.
Então gargalhou.
Jordana e sua boca suja e sua gargalhada
descontrolada que às vezes, de tão descontrolada, a fazia se desequilibrar na
vibração, falhando a voz e travando a garganta. Ela então tossia e se
descontrolava ainda mais, não sabendo se gargalhava da própria piada ou se
gargalhava das próprias falhas.
Começo a rir junto, porém não da mesma maneira
descontrolada. Estou mais contido, porque agora, enquanto o resto do pessoal
arruma as cadeiras e checa os últimos arranjos no palco para a festinha anual do
condomínio dos padrinhos dela, Jordana vai lentamente gargalhando mais devagar
até transformar aquele escândalo admirável numa sutil risadinha de felicidade.
Não. Não uma risada, não, mas certamente
um sorriso.
Jordana está sorrindo, com pernas cruzadas e
olhar perdido na direção entre a piscina de pescaria e as senhoras carregando panelas
de mingau de milho & cuscuz & alegria.
Sem notar a minha presença tão reles ali,
sentado no chão, mãos cruzadas sobre os joelhos ou sem notar o modo como o
cabelo gradativamente longo parece incólume à presença do vento ou sem notar
qualquer interferência externa ou interna que sequer ouse atrapalhá-la ou
afastá-la do sorriso leve e sutil que preenche o rosto, Jordana, alheia ao
mundo, sorri para preencher um acontecimento solidamente estabelecido na minha
memória. No futuro, mesmo sob a possibilidade do Alzheimer mais cruel, neste frame congelado, Jordana nunca será
esquecida; no futuro, sob a possibilidade do Alzheimer implacável, é para este frame que muito provavelmente
retornarei.
Retiro o celular do bolso. Sem que perceba, a fotografo
– mas ela não sabe, pois Jordana odeia fotografias, pois Jordana odeia que o
façam sem sua permissão e Jordana odeia que seus registros sejam guardados em
outro lugar que não seja na memória.
Mas,
Jordana, sussurro naquele momento como se ela
pudesse me escutar, eu preciso provar a
mim mesmo que essa merda foi real. Então sorrio (não tão belamente quanto
ela) e discretamente aperto a tela do celular, capturando, por fim, o frame.
Mas,
Jordana, preciso te ter uma só vez no futuro, nem que seja em uma foto.
E tive.
Guardo o celular após fingir que olhei as
horas.
Ela volta ao mundo real e começa a falar coisa
alguma que eu, nervoso demais por ser descoberto, quase não presto atenção. Jordana
está certamente tagarelando algo sobre comida, sobre estar feliz por ajudarmos
a montar a festa ou sobre ser boa em me obrigar a fazer coisas que nunca fiz ou
que tenho preguiça de fazer,
como montar festas juninas no condomínio.
Ela continuou a falar, a falar, a falar e a falar
– eu nunca quis que parasse.
Jordana nunca soube desta foto.