31 de dezembro de 2018

Cemetery Drive #37 [ESPECIAL DE ANO NOVO] - Travessia





Na espessa e vasta floresta, o verde escuro do topo das árvores caía sobre a noite como um véu negro. Em suma silêncio, apenas o som de insetos e aves noturnos ecoava pela imensidão natural. A região possuía diversos declives, em alguns pontos as depressões eram extensas, a duzentos ou mais metros em meio às árvores espaçadas e à relva rala, enquanto em outras a inclinação era íngreme, cinquenta ou oitenta metros acima, garantindo a errônea impressão de que dali era possível tocar as milhares de estrelas que iluminavam o céu ou o topo das árvores que farfalhavam com o vento gélido correndo floresta adentro no último dia do ano.
Entre as árvores, Annabelle Barnes segurava uma garrafa térmica de café fumegante nas mãos. Em intervalos de dez minutos, ela enchia a tampa do objeto que servia de xícara improvisada e sorvia o café com profunda calma, por vezes queimando a língua, porém jamais reclamando. Levava mais tempo esfriando o café do que necessariamente para degustá-lo. Devido ao frio que a abraçava de maneira não incômoda e acolhedora, vestia três camadas de roupa e um par de luvas nas mãos, retirando-o apenas para que a fumaça dele esquentasse as palmas e devolvesse a elas a sensação de calor e de vida.
A geografia do lugar em termos de vegetação assemelhava-se muito com o restante da maior área do território búlgaro, embora aquela em que Annabelle estivesse pertencesse à região norte da Grécia, território que correspondia ao oriente da antiga Macedônia e Trácia, locais em que o ritual prestes a ocorrer também era realizado há séculos, e onde, apesar do tempo e do decorrente enfraquecimento da tradição de alguns sacerdotes, jamais fora esquecido.
Apesar da baixa temperatura e da total solidão na floresta, Annabelle esteve o tempo inteiro confortável enquanto tentava contar as estrelas que salpicavam o céu acima das árvores. Seus olhos de profundas piscinas azul-cristalinas não desprendiam-se da maravilha que enxergava nem da calmaria que experimentava, e embora muito desejasse estar perto de seus pais ou dos amigos a quem tanto estimava, nenhum traço de arrependimento ou tristeza a invadia por estar ali: sentada no chão ao pé de uma árvore, a mochila ao lado e os joelhos dobrados. Quando não sorvia a cafeína, abraçava as pernas e as esquentava, cantarolando quaisquer canções (folclóricas ou não, rocks antigos ou não) que viessem em sua mente como forma de preencher o tempo de espera.
Aquele era o seu segundo ritual desde que aceitara a tarefa de bom grado das mãos de seu falecido amigo, Leonel. A primeira vez em que seus olhos testemunharam a passagem do rito, o último descendente dos Cattaeno já não era um homem em seu completo vigor: idoso, beirando os oitenta anos e ciente de que o relógio em pouco tempo anunciaria sua partida, ele caminhou lentamente pelas ruas do bairro de Trastevere, na Itália. Naquele ano (agora tantos atrás), Janus realizou sua última caminhada ao lado do velho homem devoto e fiel sacerdote, ou o último que sobrou para desempenhar longínqua função sacerdotal. À época Annabelle não sabia,  talvez apenas o próprio Leonel já desconfiasse: aqueles seriam os últimos passos, o último exercício de Leo Cattaeno  como guia e amigo zeloso da divindade.

28 de dezembro de 2018

Cemetery Drive #36 [ESPECIAL DE NATAL] - 500 milhas de casa












Dedicado aos que amamos e que, de alguma forma, não estão mais aqui.





I
O Paraíso



Ao longo de uma quase infinita reta de quilômetros e cercado por uma vegetação quase rasteira que anunciava aos motoristas os primeiros sinais de um longo e frio vale californiano, o Paradise empunhava-se solitário no meio de um grandioso nada. A fachada possuía fontes glamourosas de um neon desgastado, a inicial P era a única que mantinha-se vibrante a quase meio quilômetro de distância, seja lá para qual direção você estivesse dirigindo – para a boca do Inferno ainda mais longo do vale ou para os ares de companhia da civilização.
Em moldes quase clássicos de um notório e rebuscado traço, as colunas da fachada formavam semicírculos como colunas gregas ou tentavam imitá-las. De algum modo, as características do bar à beira da estrada não soavam cafonas de acordo com os gostos medíocres dos quais se esperavam de prováveis donos desdentados e barrigudos – havia, decerto, um evidente requinte na entrada como as cores fortes e vibrantes de uma planta carnívora sedenta para atrair insetos desavisados. Você precisaria subir um breve lance de cinco degraus até o largo espaço com dois bancos corridos, lisos, de madeira encerada que servia sempre de conforto para algum casal embriagado que queria respirar ar puro de beira da estrada enquanto enrolava suas línguas. Às vezes, um lobo solitário saía do bar e sentava-se ali, fumando uma carteira de cigarro na promessa de que aquela seria a última, caso um carro cruzasse a interestadual dentro de quinze minutos. Mas, às vezes, levavam até 45 minutos ou mais para que qualquer farol surgisse na escuridão que a vista alcançava. Quando as gangues de motoqueiros se reuniam, disputando seus elevados níveis de testosterona com piadinhas sujas e sem graça, que ambos explodiam de tanto rir, ou quando decidiam qual delas entraria para uma rodada, pois o espaço lá dentro não era tão largo para abrigar tantas barbas, cicatrizes e tatuagens, então alguns bebiam lá dentro e outros lá fora, às vezes revezavam, às vezes duelavam de maneira até séria demais atrás da averiguação de qual dos punhos era mais veloz.
As brigas no Paradise até plantavam-se e cultivavam-se lá dentro, mas no instante decisivo de arregaçar as mangas, era lá para fora que iam todos. A última briga fora há quase três semanas, quase um recorde. A polícia da cidadezinha mais próxima muito raro batia ali, pois apesar das rixas, os porcos alcoólatras nunca passavam dos limites (a plateia ou a própria dona do Paradise, Cyntia, não permitia). As outras ocasiões em que a polícia ali estacionava era quando o Sheriff Gillian afogava em uma caneca outra desconfiança das artimanhas da esposa ou quando levava uma das garotas do colegial para um papinho rápido e para alguns tragos na esperança de facilitar as coisas antes do grande show, que muito provavelmente ocorria dentro do próprio carro à beira da estrada.
Entre a margem da estrada e os degraus que levavam à entrada do Paradise, uma extensa área de terra batida estava sempre marcada com pegadas ou rastros de pneus, sempre suja, enlameada. A pedido da clientela, Cyntia nunca modificara o local, nem entrara com um requerimento na prefeitura de Parkins (a cidadezinha mais próxima de onde o Sheriff Gillian trazia as mocinhas) para acabar com a lama e colocar de vez uma camada de asfalto. A lama era especial – marca registrada do Paradise. Ali aconteciam as brigas, ali os brutamontes se agarravam, caíam, rolavam, esmurravam-se, cuspiam sangue e finalmente davam fortes gargalhadas pela celebração olimpiana e apoteótica de pancadaria.

19 de outubro de 2018

Dia do pecado






Hoje é o dia do pecado: faz-se brotar todo ano a memória dos incômodos infortúnios, dos pífios equívocos. Hoje é o dia do nascimento: daquele outrora pequeno e agora falante broto que carrega consigo metade do teu sangue, metade da tua origem. Hoje é o dia, um de tantos deles, da culpa que não é tua, mas que carregas por responsabilidade da tua estirpe: és, tal qual o pecador, animal racional, bípede e mamífero a ocupar o primeiro lugar na escala zoológica; és filho, és descendente cultural, social, histórico e canalha; és irmão e não-irmão. Hoje é o dia do lembrete: cresce um coágulo dentro dos teus dois espelhos, encharcando com microscópicas inflamações uma porção de sangue no centro da íris, no meio da pupila; coágulo condensado nestes olhos que mais viram tristeza do que sua antonímia, desde quando nem tristeza sabiam o que era.
Ou talvez o lembrete seja a incerteza de um Criador lá em cima que te enche de provações das quais nunca foste apto a vencer: as idas e vindas em ambulâncias, a vida farta de amor recebido, de condições e de confortos, porém tão escassa de vigor, de saúde, de amor próprio, de alegria e de algum, qualquer sentido.

Então não foste lá no dia do pecado?
Não fui aonde?
Pisaste no consultório?
Aproveitarei o tempo que me resta.
Que tempo que resta?
– O pouco que tenho.
O tempo que te restas no lado direito de teus espelhos?
– Não. De ambos os lados.
E amanhã?
– O que há amanhã?
Como será o teu...
...amanhã haverá uma bala guardada no armário, dada de presente por amigos militares quando, de tão debilitado, tu não caminhavas direito aos quatorze anos e ingerias duas doses de Oleptal, porque descobriste, sem querer, que uma apenas não aliviava e que somente duas te apagavam, sanavam-te as dores físicas das agulhas que te enfiavam de dentro para fora, das brasas te queimando a pele, fritando-te os nervos.

Infelizmente
diz alguém diplomado, de jaleco, de voz amiga e espelhos sadios, zelosos.
–, teus nervos fritaram. Os das pernas, dos olhos e talvez de outros lugares, como bem já deves ter percebido...
– Bem percebi. Há anos.
Há anos?
Há anos.
E por que não tomaste providências?
Porque isso o livrou do pecado de repassar tua prole, teu sangue, tua tristeza inerente na alma e tua descrença carregada desde pequeno no peito, quando questionavas sobre o Criador, sobre o sadismo do Criador, sobre o desdém do Criador, sobre a indiferença do Criador, sobre o egocentrismo de que entendamos nós suas plantas arquitetônicas futurísticas e tão pífias.
O Criador te deves desculpas. Porém não hoje, pois hoje é o dia do pecado, é o dia do lembrete de que, quando morreres (e isso não demorará muito por conta de todas as estradas queimadas dentro de ti, dos espelhos encharcados de coágulos agora no direito e tão brevemente ah, e o Criador se encarregará disso no esquerdo). Hoje, no dia do pecado, O Criador não o perdoará.
E de certa forma tu te compadeces da decisão, tu concordas, tu apoias. Há pecados no corpo que não descenderam da carne, mas da raiva, dos desrespeitos, da repulsa, da hipocrisia que outros usaram em ti e que em ti plantaram. Cobraram-te paciência, cobram-te benevolência em um mundo não benevolente em cada detalhe, em cada gesto e em cada relação de parentesco, de irmandade não consanguínea, de profissionalismo, de religiosidade e, ah, sim, de amores também. E dos afetos, dos antigos afetos que tu mesmo miraste, apontaste e executaste, teus pecados devem e deverão ser cobrados um a um: da praga que disseste, dos maus agouros sobre doenças e mortes, sobre as ofensas, sobre a hipocrisia (da qual tanto apontaste naqueles tempos e pela qual tanto és apontado nestes daqui).
Tentas com veemência corrigir teus homicídios simbólicos, teus feminicídios metafóricos. Tentas mudar para renascer outro, outro melhor, outro minimamente pior – e em certos aspectos, até consegues –, mas enquanto houver memória, corpo vivente e consciência errante, o passado não será passado. E um dos teus olhos, agora gradativamente escuro, enxergará apenas o passado tão presente, e o outro, que tão amedrontado caminha na corda bamba, enxergará unicamente o presente sem futuro. Porque tu foste um porco malvado, propositalmente asqueroso, disseste coisas que não existiam e que passaram a existir quando verbalizaste com desmedida raiva, insano ódio e imperdoável repulsa.
Verme escroto.
No dia do pecado tu hás de pagar, hás de saber que o errado não é atirar a pedra naqueles que visivelmente merecem, senão o contrário: errado é não apedrejá-los. Quando não fizeres aos sujeitos torpes com quem “artisticamente” topaste (leia-se o termo com infinitas aspas e interminável ironia), por te sentir incapaz de julgar como um juiz desprovido de erros próprios, então igualmente te julgarão, embora não saibam tuas escolhas, embora não saibam o porquê estiveste ali ou graças às permissões de quem paraste ali.
Mas foi um erro. Outro equívoco inconsequente por baixa quantidade de miolos eficientes. Quiseste agir feito o Filho do Homem, mas o Filho do Homem é apenas alegoria, um falso ideal inexistente e não condizente com a vida terrena, a vida real. Pois na Terra a lei a imperar é a do fogo, da fogagem, da fogosidade, da foice e da fogueira. Pois na Terra todos estão queimando e pecador é aquele que não atear fogo, o omisso, o covarde. Então tentas corrigir, mas o fazes errado por desejar (com fracasso) soar despretensioso, sonso e lerdo, e assim soltando a informação crucial que desmascara a belíssima manipulação e autopiedade de “artistas” (leia-se o termo com infinitas aspas e interminável ironia) tão cortejadores e mascarados. Teu tiro saiu pela culatra. A partir daí julgam-te por não apedrejar ao invés de meramente denunciar.
Todavia, tu entendes os julgamentos. Entendes porque Vida te explica (“Vida” é tão somente um especial anagrama para representar mais um alguém na tua escrita). Pois quando Vida fala, tu escutas. Pois quando uma Libra fala, tu escutas; pois quando a outra Libra fala, tu também escutas. Tu escutas a todas elas, mesmo que discorde em um dia, analise e dê o braço a torcer em outro, vestindo o ato de concordar.
E concordas.
E tentas melhorar.
E agrides a ti mesmo nestas linhas e em tantas outras passadas.
E fazes chacota com o tipo que és ou com o tipo monstruosamente descontrolado que já foste.
E fazes um escarcéu.
E expões a ti mesmo. Pois não somente hoje, mas em todos os outros dias há de se comemorar os pecados. Que o punidor perfeito não seja o Criador ou o povo na praça que tão pouco sabe de ti, a não ser tu:
És advogado de acusação,
és juiz,
és carcereiro
e carrasco de ti mesmo.
És o bobo da corte que aponta para todos estes porcos em forma de homens que clamam em praça pública por biscoitos, biscoitos em demasiado, quase esquecendo que só o fazem para compensar os mesmos equívocos que cometeram no passado contra mulheres de tantas letras: das Agnes, das Brunas, das Carlas, das Divas, das Elizas, das Fátimas, das Gabrielas, das Helens, das Ivanas, das Jamiles, das Lorenas, das Marias, das tantas e milhares e milhões e bilhões de Marias ao longo de toda a nossa história que ouviram as mesmas coisas que tu, tu mesmo disseste, das quais também não estarás livre. Porque o passado é uma formação geológica imortal, mais duradoura que as estruturas no Cairo ou os alicerces em Delfos.
Não importa o cilício diário que aplicares contra ti mesmo. Não. Haverá. Paz. E que bom (este é o único ponto em que concordas com o Criador: a punição eterna enquanto forem eternos os teus poucos dias restando). Com os teus olhos se apagarão a tranquilidade e a consciência do lago cristalino que há anos secou.
Não importa o quanto haverás de melhorar;
não importa o quanto melhoraste;
não importa que a própria Vida (este belo anagrama) passe as mãos por teu rosto e diga que o compreende e que o perdoa, apesar de não poupá-lo da lembrança de teus próprios equívocos – e com razão;
não importa que Vida te abrace e faça o turbilhão evaporar de tua cabeça com lábios ternos e coração tão gigante, embora ela mesma duvide disso;
não importa que todas elas (exceto uma, aquela que mais temeste e a que mais se esvaiu sem disso saber) tenham conhecido o que fizeste antes de tu amá-las ou te tocá-las;
não importam tuas piadas literárias e metafóricas;
não importam tuas automutilações escrachadas, berradas,

berradas como esta;

não importa se fazem a História maleável pelas bocas das vítimas ou dos vencedores, se o passado é sólido, bruto, implacável e não lapidado.
Por tudo isso, aplausos soam ao Criador pelo dia do pecado não exterminado, pelo pecado santificado e insidiosamente penitente. Por isso precisas concordar com teu julgamento celeste que certifica tua condenação interna, a terrestre.
Porque o objetivo, nota-se, é teu desejo de mostrar-se ao mundo, de despir-se ao público: revelar “a besta em mim”, como cantou Johnny Cash ao entoar que “é enjaulada por barras frágeis e fracas”. Pois sabes, de algum modo, apesar das melhorias, da diária fuga de senhoras abusivas e nocivas, do temor paranoico de situações conflitantes, das confusões e das brigas, e que apesar de um melhoramento não completo, de uma desconstrução impossivelmente palpável, que há algo diabólico aí dentro. Ainda és passível de loucura, de falta de preparo ante traições e de consequentes descontroles.
Por isso corres de todos eles. Por isso tens corrido desesperadamente e suprimido com sumários atos misericordiosos os indícios da besta, da fera enjaulada, do demônio que cochila no mesmo inconscientes dos mitos que amas – como o amor incondicional e o paraíso celestial – ou dos sonhos que tão massiva e tolamente não deixas de te agarrar. Por isso, como entoou Cash, tentas esquecer “o monstro inquieto de dia e de noite, que cria confusão e se enfurece com as estrelas” tão facilmente. Por isso o monstro aí dentro com a mesma fagulha de raiva clama pela existência de um Criador, dessa vez não para puni-la, mas para ajudá-la.

“God help the beast in me”.

Entretanto, enquanto houver dias de pecado, existirão o sagrado cilício, o sangue invisível na língua e o visível nas retinas escurecendo esperanças e ralos objetivos de se viver mais um dia de amanhã. Enquanto houver dias de pecado, haverá punições como estas: faces hediondas que estampam o mundo e como muito bem vens detectando, seja através das minúcias e dos relatos, seja através da denúncia dos falsos sujeitos criadores-poéticos que tão bela ou heroicamente gritam por aí em praças públicas angariando aplausos – não há, para eles, júbilo maior.
Esta é a tua “face hedionda” como dito por Nelson Rodrigues e como bem será citado a seguir. Pois estás, desde que engoliste Gababentinas e Duloxetinas com whisky, punindo-te com o (infelizmente, nada misericordioso) ato diário de passar a mão no rosto e reconhecer tua hediondez.

“Somos aquela pureza e somos aquela miséria”.

“Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva”.

Mas o sentimento não está te salvando. Ele está te matando, corroendo-te. Na boca é mais que bílis, é cianureto.

Pois o homem não nasceu para ser grande, o mínimo de pureza o desumaniza”.

Afinal, ora essa:

“O ser humano é cego para os próprios defeitos. Jamais um vilão do cinema mudo proclamou-se vilão. Nem o idiota se diz idiota. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Nunca vi um sujeito vir à boca de cena e anunciar, de testa erguida:
‘Senhoras e senhores, eu sou um canalha’ [...]”.

Porém aqui (não canalha, mas idiotamente), tu confessas e proclamas, para encerrar mais uma de tuas severas autopunições. Acusando-te, revelando-te, expondo a besta de Cash para o público nesta tua taverna de horrores:

– Senhoras e senhores, eu sou um pecador.









19 de setembro de 2018

Jardinar







O que tu fazes
e como tu fazes
não é a minha praga
correndo na cozinha
ou dentro do armário
roendo minhas cousas
ou defecando
em minha pia.

A praga que rói as minhas
fibras,
a peste que corrói a minha
paciência
é quem tu és e quem finges ser,
caro Florista,
ó, jardineiro das cartas.

A praga que assola meu
pulmão,
a praga que apunhala meu
Ardor
(com o mesmo “A”
do Ás que
tão fortemente vangloria-te
em seres o melhor)
é o pulso negro,
o nariz levantado,
as madeixas longas,
a barbicha tonta,
a insânia da tua imagem
tão porcamente bela
borrada nos espelhos
desta cidade
com mil olhos cegos.

Se jardinar estas flores
e florir estes poemas
é mero jogo de Astúcia
vozeado em curvilínea
língua de prata,

se jardinar estas flores
e florir estas poesias
é mero jogo de cegueira
injetado em corações
admirados,

e se jardinar estas flores
e florir estes contos
é mero jogo de vaidade
orquestrado em tabuleiro
manipulador e violento,

então toma aqui minha luva,
toma aqui meu alicate,
toma aqui meus manuais
toma aqui minha sensibilidade.
Então toma aqui os mestres,
toma aqui o sistema
e também as regras
sobre como quebrá-las.

Entrego-te minhas ferramentas,
minhas letras e meu legado.
Entrego-te o que me sussurraram
Eliot e Gabo.

Ó, Jardineiro,
entrego-te todo o preço necessário
para alcançares tua montanha.
Entrego-te tudo
e abandono este jardim
                       (vou-me ali reaprender a criar)
                       (vou-me ali
                                                   reaprender
                                                   de outro jeito).

Se jardinar é
o que chamas de
Arte” com “A” maiúsculo,
meio torto,
distorcido e anuviado
como o Ás com “A”
da Altivez e da Arrogância
que trazes na manga,
então não quero jardinar.

O que quero,
Ó, jardineiro das cartas,
é criar sem esquecer
o que eu sou
e quem eu sou
ante a criação.

O que quero,
Ó, jardineiro das cartas,
É criar para tentar,
ao menos,
brotar menos homem
e florescer mais humano.



(Felipe Santiago, 01.05.2018)

11 de setembro de 2018

Jaula





Nossos corpos são jaulas
Condenados às anomalias do século
Fadados à corda
Aos anseios
Às bolhas sem ar
Ao silêncio do grito
Às patologias do sangue
Aos olhos sombrios
Às retinas inflamadas
Aos amores inflados
Secretos,
Cuspidos,
Inchados
De vazios não sanados.

Nossos corpos são jaulas
De nossa liberdade lendária
Das falsetas dos sonhos
Dos pais partidos
Das mães devotas
Dos boatos perdidos
Sobre terras distantes
Sobre a paz errante
Sobre curas vindouras
Carregadas com a promessa
De salvadores alados
Da lábia divina
Da antiga mentira
De retornos desonrados.

Nossos corpos são jaulas
De pulmões presos
De sangues impuros
Da mácula
Dos filhos malditos
Da cegueira
Dos pés inchados
Doloridos
Cansados
Que já não podem fugir
Que já não podem correr
Que já não podem voar
Que já não podem pisar
Nas Terras d’outro corpo.

Nossos corpos são jaulas
São celas seladas
São correntes atadas
Em nossos pulsos marcados
Por nosso passado cortado
Com pálpebras que nunca teremos
Dos heróis que nunca seremos.

Nossos corpos são jaulas
Espaço cercado
Claustrofobia profana
Em espaço cerrado
Do qual
Livres
Jamais escaparemos.


(Felipe Santiago)

7 de setembro de 2018

Marcha amarela





Os dias são um acúmulo de tanto faz.
Um tanto faz
fazendo barulho,
urrando nestes quartos apertados.

Lá fora,
uma legião tingida,
fingida de amarelo.

Desalmada,
desfila nas ruas
com seus cantos de marcha
sobre nossa geração desarmada.

Cavalgam perigosas baleias azuis,
mas não as expulsam.
Caçam-nas como capitão Ahab
em nome do orgulho,
da imagem e da glória
– pois só assim do povo obterão clamor.

Não sobem nos prédios,
não rompem os quartos,
não mergulham nos escombros
por resgate.

Cantam mais alto que os gritos mudos,
pois a tarefa é o regozijo:
é mais embelezadora que receber os apelos
com a atenção de nossos braços.

Aqui fora, nas ruas,
vejo todos vocês,
soldados amarelos:
marchando,
marchando,
marchando.

Empenhados
com tão belos discursos
recitados
nos palanques.

E nestes prédios,
nestes quartos,
nestas hastes transversais no umbral das portas,
nos cintos apertados
e nas cartelas esvaziadas,
não vejo nenhuma ajuda.
Não vejo nenhum soldado.

Não vejo os meus comparsas,
não vejo os meus colegas,
não vejo as mãos macias que me juraram amor.
Não vejo os gurus bêbados regando misericórdia.

Não vejo tropa alguma no escuro das noites letradas.
Não encontro a ajuda antes escrita nas dedicatórias de Cecília,
de Shakespeare,
de Drummond ou de Camões.

Eu
não
vejo
esse
DEUS
nem
seus
sacerdotes
da igreja
da empatia.

Não há muitas tentativas por aqui,
a não ser esse
canto
desfilado
superficial
destilado
e inútil:

Marchando,

marchando,

marchando...



(Felipe Santiago)

20 de agosto de 2018

Tiro





Quando falas de mim
tua língua me faz crer
tão certamente assim
que sou um monstro.

Agora, frenético,
persigo seres impuros.
Vidrado e louco caço
estes animais noturnos.

Em minhas mãos,
um rifle apontado.
Em meus punhos vãos
o destino engatilhado:

Diante da fera,
dobro o dedo:
BANG!
E um tiro no espelho.


(Felipe Santiago)

8 de agosto de 2018

Apocalypse TOP






Sabe, um dos grandes “problemas” com os interiores é a quantidade de mato em volta. Especialmente no meu caso, e isso por uma razão muito simples: o matagal fechado é um lugar incerto.
Você senta no fundo do quintal e olha para aquele mar denso e verde. Durante a madrugada, quando dá uma volta na cozinha para beber um copo d’água e inevitavelmente olha para o mato, começa a imaginar um bando de situações esquisitas, das mais reais às mais absurdas possíveis. Só que... presta atenção... a questão interessante é que esse problema do mato é como a alegoria do abismo, sabe? Você olha e ele olha de volta.
Então você senta na mesa de refeições. Dali, dá para enxergar o quintal e o mato todo que toma os fundos do terreno. Especialmente se você mora no Pará. Certo. Você permanece sentado por minutos a fio e, por causa de sua profissão e de sua arte (a arte de criar um bando de histórias esquisitas, profundas, dramáticas, sangrentas ou sarcásticas), os pensamentos o assaltam: você imagina criaturas da mata te observando, sacis-pererês, curupiras, matintas-pereras, o Cramunhão em carne e osso, a primeira namorada (ou namorado) ou sua analista. É seu trabalho (o meu, no caso) imaginar estórias e besteiras. E então imagino. Sentado, aqui, na cozinha de minha casa de veraneio no meio do interior. Uma centena de criaturas bizarras caminhando no escuro, observando, espreitando, aguardando o momento de ataque. Ou, mais particularmente, uma tropa de zumbis caminhando, caminhando, caminhando até você (até mim, claro).
Ah, um detalhe: este conto é sobre zumbis (é conto mesmo? Nem sei).
Entretanto, quanto ao espaço, interiores são regiões igualmente seguras, pois são distantes dos centros urbanos. Se você soube escolher qual interior se refugiar, então se deu bem. Se você não possui uma casa cercada por muros, mas por cercas ou por gramados abertos como as antas dos yankees, então você não se deu muito bem. Mas já sabemos disso.
Já sabemos, certo?
Todo esse lenga-lenga narrativo para finalmente dizer que a primeira vez que planejei escrever este texto, foi no distante ano de 2015. A história era a seguinte:
Um estudante caminha com alguns colegas pelos corredores da Universidade Federal do Pará. Talvez ele seja de Humanas, não muito esportivo, porém leve e rápido como um Impala. Os colegas dividem-se entre meninas e meninos. É de noite e eles precisam atravessar a ponte em direção ao Campus Profissional, pois estão saindo da aula e seguem para o terminal de ônibus. No meio da ponte, sob a iluminação naturalmente inexistente (à época), dois rapazes cambaleantes vêm em sua direção. Vestem camisetas pólo (um deles, uma camiseta listrada de branco e azul celeste), braços malhados, estufados, passíveis de explodirem diante de uma espetadinha de palito de dente. Talvez possuam tatuagens tribais. Ou faixas, listras impressas na pele. Ou tigres. O JESUS É MEU PASTOR.
Naquele ano, todos estes elementos descritivos precisavam ser utilizados de maneira irônica, cômica e debochada (não que tenham perdido o teor e o sentido cômico, em tese ou essência). Então os dois rapazes se aproximam: os sapatênis arrastando-se debilmente pela estrutura de ferro. Os relógios brilhantes e enormes brilhando no escuro. Os óculos de grau fininhos nos rostos de expressões muito fortes ou muito delicadas. Ah, sobrancelhas milimetricamente tiradas.
Finalmente, os dois rapazes são iluminados por um indistinto ponto de iluminação e o grupo de estudantes é atacado. Os brutamontes são lentos, com olhos azulados e branquelos, embaçados, gosmentos. Rasgos nas bochechas, dentes extremamente amarelados e gengivas escuras, podres, fedorentas como as dos horrendos piratas dos épicos infantis. Eles esticam os braços, agarram alguns jovens, talvez até segurem e abocanhem a perna da menina da qual nosso herói possui interesse amoroso. Mas ela morre (não que também faça diferença agora). Os poucos sobreviventes do ataque correm, incluindo ele. Os dois agressores monstruosos erguem os olhos, momentaneamente atraídos pela fuga. Emitem um balbuciar esquisito – um som que repetem com frequência desde que surgiram na escuridão da noite.
Nosso herói corre, assustado, desorientado. Quando olha em volta, percebe que há mais daquelas criaturas, outrora-pessoas-normais... talvez. Com braços esticados, agressivos, rangendo os dentes, peles pustulentas e arrastar lento e retardado de pés, eles murmuram e balbuciam com a língua sem muita coordenação, as gargantas arranhando e o sangue manchando suas bocas.  
Aterrorizado, sem crer na situação, nosso herói compreende o que dizem. Ele identifica o conjunto de sons que emitem e aquilo que significa.
Três sons e três letras.
Aproximando-se, cercando as vítimas, os monstros retardados repetem:
– Top... Top...
E os que se aproximam, atraídos pelo cheiro da carne e dos cérebros, também dizem:
– Top...
– Top...
E os mais avançados, com menos músculos e até com camisetas diferentes, porém muito provavelmente mordidos e contaminados pelos primeiros, ousam gesticular sons mais complexos:
– Topzz... topzeirr...
– Topzeirrr... rrrr... to...
– Topzeirrrr... aaaa...
Quando o restante de seus colegas é atacado, o herói  enxerga uma brecha entre os monstros e corre através da escuridão e da noite, livrando-se do ataque e mergulhando num futuro incerto.
Bom, eu nunca escrevi esse conto. Esqueci por três longos anos.
Pelo menos até o momento. Agora, absorto em minha cozinha de casa cercada por altos e fortes muros, rodeado por mato no interior, escrevo isto na máquina de escrever. O tec-tec-tec ecoando na madrugada e no quintal escuro. Tenho uma xícara de chocolate quente nas mãos (estamos economizando café desde que nossos estoques diminuíram, há cerca de sete meses).
As criaturas espalharam-se pelo mundo. Às vezes, durante os pesadelos, vejo-me balbuciando os sons... as palavras... que agora multiplicaram-se, estão variando, evoluindo, talvez em função de alguma lei evolutiva jamais imaginada por Darwin. Eles dizem coisas novas.
Balbuciam.
Sussurram.
Debilmente, confusos, perdidos, distinguíveis.
Coisas inimagináveis, porém dizíveis.
Pronunciam:
Top... top... top, top…
E também suas outras formas com mais frequência:
– Topster... toppzz... topzzzão...
– zeeeira... top...
Outro dia, em minhas caminhadas sorrateiras, encontrei uma espécie nova. Aparentemente mais agressiva, mais ligeira, afetada talvez por uma variação regional ou temporal do mesmo vírus. Quase atacado, correndo como o herói daquele conto, consegui escapar.
Atrás de mim, elas repetiam:
– Arrrrr... arrrr... arrob... b...
– Arrob...
– A...
– ...rroba... aaaa...
Consegui voltar ao meu território de salvaguarda, mas, sinceramente, não sei por quantos anos estes muros aguentarão a evolução do vírus maldito.
Talvez, se eu houvesse escrito o conto na época e levasse minhas palavras às autoridades, quem sabe nossas chances fossem melhores?
Quem sabe?


Agosto de 2018