23 de novembro de 2017

Linhas côncavas



Linhas,
linhas côncavas,
linhas sob as digitais, linhas entre as palmas. Linhas comigo, em cima, em baixo, linhas in, linhas sobre e linhas sob. Linhas sob a luz da sala apagada e linhas sob a luz da cozinha inerte, diante dos meus dedos, iluminadas, vivas, acesas. Linhas de madrugada, ansiosas e verdadeiras em despirem-se, verdadeiras em exibirem-se serenas ou afoitas. Linhas que sobre mim não se controlam, embora quem a fingir quase-controle seja eu: embasbacado em admirá-las, tolo em afagá-las com dedos, boca e língua. Do corpo feminino, depois de cabelos, depois de unhas, depois de olhos e depois de dedos, eu admiro os seios: são eles milimetricamente posicionados para acolher não a face inteira, mas a lateral do rosto, num acalento estrategicamente orquestrado pela genética feminina; não importando se grandes, não importando se medianos e não importando se pequenos, não importando se um desconcertado broto ou não importando se tão belos e colossais; estão sempre ali, às vezes em sincronia, às vezes acanhados, às vezes sem pudor e às vezes paradisíacos em simetria.
Desejei, tão falho, escrever sobre tuas linhas.
Desejei, tão falho, falar sobre os teus seios, acalantos arredondados, discretos, não dos pequenos que por aí encontrei e tanto venerei, mas desses quase-medianos, com linhas côncavas, insanamente esculpidas pela natureza, pela genética ou pelo Desenhista Universal, O Arquiteto Criador de céus, mares, galáxias e seios.
Desejei, falho, falar sobre eles sem soar agressivo, torpe e violento, sem soar misógino como aquelas duas meninas (que sempre revezam nomes e aparências aonde quer que eu vá) bem disseram que eu era, quando, horrorizadas, escutaram a leitura minha de um conto, crônica ou poema em volta da roda. Algumas delas levantaram-se. Outras reviraram os olhos. Essas duas permaneceram como as duas do outro texto, texto distante, numa agora perdida sala de um antigo e perdido grupo de apoio para suicidas em potencial.
Desejei, tão falho, escrever sobre teus seios sem soar como Bukowski, porque há quem diga por aí que faço-os lembrar do velho safado quando escrevo, pois estas linhas, às vezes, trazem consigo um palavrão ou o nome de alguma genitália devidamente escrita e carregada, como alguém que digita em caixa alta para expressar grito e eloquência.
Desejei, falho, no entanto escrever de maneira diferente de Bukowski e diferente de mim, sem palavrões, sem nomes de genitálias, sem ofensas ou podridões; desejei, tão falho, escrever sobre as linhas dos teus seios sem nem mesmo usar a outra palavra, a mais vulgar delas, porque enquanto estavas sobre mim, daquele jeito intenso, sim, mas tão bela e louvável, com a camisa do Monkey Business sobre o corpo – a única peça ainda a te cobrir –, e minhas mãos subiam e arrastavam a camisa só pra vê-los balançando, subindo macios, descendo orgásmicos, foi com beleza que te enxerguei e foi com ternura que desejei te eternizar, independente dos caminhos que nos guiarem daqui em diante.
Desejei, falho, tecer a respeito das linhas do teu corpo e dos teus seios arredondados com o mesmo toque dos poetas, embora poeta eu não seja – sou só um contador de histórias a domar aqui e ali as palavras. No entanto, domar palavras não requer dom, requer prática. Com dom, meu bem, nascem os poetas, que dos teus seios fariam poema épico com palavras rebuscadas, trocadilhos em latim e referências classicistas; dominariam a musicalidade, o ritmo e a rima, não A com B ou B com A como os domadores de guardanapo tão banalmente ousam dominar.
Com teus seios eu faria muito, muito mais do que tão mera e tolamente falar sobre
linhas,
linhas côncavas, suadas e bem alinhadas com as tortas linhas de torto destino que marcam as palmas de minhas mãos.
Desejei, tão falho, escapar da sina de tantos Bukowskis de prosas agressivas que afastam leitores sensíveis e críticos xiitas, exacerbados e desesperados por poesia nata e sensibilidade latente. Desejei, falho, escapar da sina de escrever da maneira antiga (pelo menos aos ouvidos das meninas que escutaram apenas um conto errado e outro), sem tratar com banalidade, descaso ou desrespeito o teu corpo com cheiro de sabonete líquido, o teu corpo pós-banho de pele macia, suave e com os seios vivos, redondos, macios e bem-talhados.
Desejei, espero que não tão falho, talhar por aí o casual primeiro encontro de quando tuas linhas vieram parar sob o meu toque, para tocá-las e para senti-las, para talhá-las na atual lembrança da minha pele.
E por isso tuas linhas em minhas linhas toco agora:
tão côncavas,
tão lindas.


7 de novembro de 2017

À primeira das musas



Dizei-me agora, ó Musas que no Olimpo tendes vossas moradas -
pois sois deusas, estais presentes e todas as coisas sabeis,
ao passo que a nós chega apenas a fama e nada sabemos -,
quem foram os comandantes dos Dânaos e seus reis.
A multidão eu não seria capaz de enumerar ou nomear,
nem que tivesse dez línguas, ou então dez bocas,
uma voz indefectível e um coração de bronze,
a não ser que vós, Musas Olímpias, filhas de Zeus detentor da égide,
me lembrásseis todos quantos vieram para debaixo de Ílion.

(A Ilíada, canto II)







À primeira e última das musas,



Eu nunca escrevo confissões. Detenho-me a nada mais que envolva poesia, arranjo, encenação, ficção, desprezo ou exagero.
No entanto, hoje é o dia de seu aniversário e nos últimos anos eu falhei em parabenizá-la, talvez de propósito, talvez por vergonha de ser o sujeito aleatório do passado que ainda passa aqui de vez em quando. Eu não queria ser esse cara, embora tenha sido com frequência. Então saiba, aqui e agora, que desde esses últimos sete Sete de Novembro, estive lembrando de você.
Eu nunca esqueci.
Queria agradecê-la por tudo.
Este blog não existiria sem você: quando a conheci, você escrevia. Foi você quem me inspirou a levar ao mundo o que eu fazia, foi você a primeira a me incentivar a isto. Foi por você também todos os meus melhores textos, embora você nunca tenha acreditado (e eu voltarei a este maldito e doloroso ponto mais à frente). Foi você aquela a me inspirar nas primeiras linhas sobre curvas e cabelos castanhos – os primeiros cabelos castanhos foram os seus e os primeiros olhos castanhos também foram os seus. Foi por você, na distante adolescência, que aprendi um pouco mais sobre horóscopo, no entanto, especificamente sobre dois signos, o meu e o seu. Foi por sua causa aqueles dois apelidos infantis e bobos, criados por você e adotados tão severamente por mim.
Foram por você também todas as metáforas com os escorpiões, as boas e as ruins – sobre como eu te achava por vezes distante, fechada, alheia a um universo maravilhosamente charmoso e secreto que tanto permeou minhas linhas e meus primeiros poemas. Foram por você todas as noites escuras repetindo Skid Row com Breaking Down ou quando contou que The Suburbs te fazia lembrar de mim e, mais à frente, Somebody that I used to know, que eu, tão burro, vim a compreender só depois. Claro que eu escrevi sobre isso, mas certos escritos não referenciarei aqui, não mais. Não alguns deles.
Você me manteve na linha, foi meu norte secreto – eu sabia, no fundo, que essa intensa dedicação secreta em nada daria, como em nada tem dado ou nada dará, mas era um porto seguro: ter a quem se dedicar, ter a quem voltar, metaforicamente, todas as noites.
Bem, vieram então as outras mulheres e todas elas, sem exceções, eu magoei desastrosamente em função deste apego que existia e desses textos que nunca paravam. Eu não me controlei, eu fui um péssimo mentiroso porque não fiz questão de esconder, não fiz questão de ocultar. Parecia-me charmoso, parecia-me uma espécie estranha de fidelidade e eu fui tão fiel a você ou ao que eu criei de você. Eu fui fiel: ao que eu acreditava, ao que eu escrevia, ao que eu tanto desejei ter um dia. E por tantas vezes eu te disse, em meio aos inúmeros vai-e-vem que nos levavam àquelas perdidas conversas, que todas minhas criações mais dedicadas eram suas.
Mas você não acreditou.
Nesse ínterim, eu quebrei mais um punhado de corações. Eu não me permiti apegar, não me permiti sair da bolha. Eu fui uma criança tola, apegada a um ideal romântico fora de moda, degradado, sustentado por um punhado de filmes e histórias fajutas que nos fazem acreditar em mentiras e nos distanciam do fortalecimento de nossos próprios corações, nossas próprias seguranças e nossas próprias fortalezas. Eu fui tão fraco e tolo e construí-me tão fracamente, tão tolamente.
E quebrei mais alguns corações.
E conheci estranhos amores ou estranhas formas de amar, mesmo que gradativamente, mesmo que às pauladas e à insistência. Mas eu sempre fui um caso perdido e de avisos enchi todos os cantos da cidade. Em partes, cada um dos meus textos e das minhas dedicações ao teu nome eram a minha forma explícita de dizer a cada uma delas que eu já pertencia a alguém, metaforicamente falando, é claro. Meu corpo e minha dedicação por alguns instantes poderiam ser delas, mas não o coração. E por isso quebrei outro punhado de corações. Mas elas não pararam de vir: afoitas, desesperadas, tão empolgadas pela promessa que eu era, embora eu sempre soubesse e dissesse que era pouco, tão pouco. Fiquei conhecido por meus escritos a você, todos vinham, curiosos, a perguntar: quem é ela? Quem era você, senão algo além de uma pessoa? Quem era você, senão transmutação de carne em linha, mera criação minha? Inaugurei o jogo da autodepreciação e antes que considerar-se lixo fosse uma moda dos tempos atuais, eu já me considerava primeiro. No início, fazia por charme. Com o tempo, tornou-se hábito. No fim, acabou sendo verdade. No meio do caminho, conheci mais a fundo meus heróis: os Henrys da vida. Moodys e Chinaskis. Aprimorei-me tanto. E escrevi e escrevi e escrevi como um louco a ponto de transformá-la não mais na causa, mas na consequência.
Na noite que escrevo isso (metade de Setembro ainda), assisto ao episódio de Californication em que Hank decide voltar para Karen, mesmo tendo em Faith a promessa mais intensa e digna de felicidade que a série em seis temporadas jamais o proporcionou. É um episódio triste, porém necessário – foi graças a ele que sentei aqui para escrever estas palavras que há quase um ano pretendia. Hank não fica com Faith, Hank abandona a fé, põe seus monstros abaixo e volta àquela porta vermelha, volta à Karen e à sua promessa de vida mais verdadeira (sim, eu também escrevi sobre isso em algum ponto da vida).
Você foi a minha Karen por tempo demais, antigo amor. Entretanto, eu me agarraria a uma fé nova – não vejo muitas por aqui, ultimamente.
Há aquele dialogo em 500 Days of Summer: "Henry Miller disse que a melhor maneira de esquecer uma mulher é transformá-la em literatura". Foi uma garota quem me relembrou desse diálogo, comentando sobre um dos meus mais icônicos escritos a seu respeito, em um distante ano de dois mil e onze que você provavelmente não leu.
Tudo bem.
Já a garota, ah, ela também se perdeu. Com o tempo, todas se perdem.
Henry Miller estava certo. Com o tempo, você deixou de ser furacão, tornou-se ventania. Em seguida, apenas uma brisa. Eu havia crescido e havia conhecido, como mencionei, estranhas formas de amar. E eu amei. Forçadamente. Irresponsavelmente. Depois fielmente e fui amado tão abusivamente que dobrei-me e deixei a maré me conduzir, permiti-me ajoelhar e acumular coisas ruins, embora houvesse um estranho amor. Por vezes sereno, por vezes insano. Para sujeitos perdidos e loucos como eu, quase caiu como luva, quase. Foi a esta altura que eu te deixei partir de mim, na verdade eu a assassinei, catacumbei-a em um texto nada dolorido à época, mas extremamente necessário.  
Escrever sobre sua morte foi necessário.
Na realidade, foi ouvindo Audioslave, Like a Stone, que percebi pela primeira vez que você não estava mais por aqui. Quis, em tentativa desesperada, ainda sentir por você qualquer esperança ou anseio de retorno, mas não era por você quem me fazia chorar a música. Era por outra – aquela com quem eu aprendi amar de forma estranha e gradativa, mas a amar.
E eu amei (ou não, muito provavelmente e com toda a certeza).
E eu me perdi – em (des)controle, em (in)consciência e em (in)sanidade.
E perdi tudo.
Então veio o mundo.
Ele é um lugar perigoso e você encontra coisas que mudam absolutamente tudo.
Surpreendentemente, eu encontrei. Se existe um Deus e se ainda estou aqui para contar, esse encontro foi dado a mim como breve dádiva, salvação necessária. Eu encontrei algo novamente, o bom e verdadeiro algo (logo eu, que era tão receoso e tão impenetrável, vi-me diante daquele estalar de dedos que não via há tanto, tanto tempo).
Mas como furacão, tão breve quanto tudo, ela também se foi – sem desastres, sem brigas ou sem motivos. Apenas se foi.
Mas você aprende algo com a maldita loucura e aprendizado e foi o que colhi com essa profunda dedicação e com esses estranhos caminhos. Eu construí monumentos em nome de Nomes: obras desprezíveis, sim, mas belas, incendiárias, ardentes e irônicas, escarradas de ódio e injúrias, desesperadas por defender a própria imagem e desesperada ante as injustiças, maldosa em sua malícia, generosa em sua bondade, acima de tudo infinitamente íntegra em sua sinceridade.
Hoje, quando escancaro tais palavras ao mundo, é Novembro e já fazem meses desde que fui uma última vez a você. Contei a grande verdade desmedida, perguntei em direto e definitivo a verdade e falei o que aqui tudo escrevi – o que aqui tanto invoquei, como um Homero esquecido. Mas eu já sabia, no fundo, que você sempre estivera alheia ao que eu sentia ou ao que eu escrevia; sempre esteve alheia à minha dedicação. Lobos uivam para uma lua nem aí, certo? Eis o texto em definitivo a expressar a verdade sobre aqueles que tão irresponsavelmente dedicam-se a algo. Você me confirmou: disse-me que não fazia ideia, disse-me que nunca desconfiou do que de fato eu te dediquei.
Aí disse que sentia muito, preocupou-se por ter causado estrago a alguém, um sinto muito, ligeiro susto, ligeira distância e...
Foi isso.
Apenas isso.  
A última mensagem.
Então regressei para casa e enchi a cara por uma semana, recluso por um mês inteiro:
Tudo o que fiz foi em vão.
O universo devolve alguns karmas e dos ruins eu estive cheio e acumulado, mas aprendi algo sobre as musas. Sinto falta de tê-las hoje, sinto falta de ter alguém a amar ou alguém a quem desejo voltar. Não desejo mais o regresso a alguém, e isso, de certa forma, é em si liberdade. Não há ninguém a quem voltar no fim da noite a não ser a mim mesmo, embora eu não tenha cabelos castanhos ou olhos castanhos tão belos quanto os seus; embora eu não tenha curvas sinuosas como as delas; embora eu não tenha manchinhas marrons no tornozelo; embora eu não tenha meios de pernas saborosos, suculentos e acolhedores; embora eu não tenha cabelos curtos e negros como as francesas do século passado; embora eu não seja loiro como eram as traiçoeiras Marias de rostos angelicais criadas por Eça de Queirós; embora eu não possua aromas de plantas nos cabelos ironicamente também castanhos.
Hoje, é somente a mim a quem retorno, a quem vivo e a quem, gradativamente, dedico-me.
Eu não sou tão belo ou sequer digno de qualquer inspiração. Não sou digno sequer de boas lembranças como as boas ou os bons antigos amantes o são. A minha sina e penitência, antigo amor, é ser amado brevemente e depois despido, descoberto e desamado; minha sina é ser passageiro; minha penitência, da memória obliterado.
Por isso eu escrevo e por isso eu luto contra o tempo e o esquecimento. Acho que é essa minha mais desesperada tentativa: saber que não fui amado por nenhuma delas para o sempre, porém saber que para cada uma delas teci amor infinito que nem o tempo nem as trágicas ocasiões ousarão apagar.
Para isso servem-me as palavras, para isso servem-me as musas.
Para isso, primeiramente, serviu-me você a quem tão severamente servi.
Foi você quem me ensinou tudo isso e é aqui onde tudo acaba, fechando ciclos (este chulo blog) que outrora jamais julguei que seriam fechados.
Obrigado pelo meu poieîn,
obrigado pela aventura.

Uma vez e agradecidamente seu,
F.S.