Há exatos três
meses eu não desço gota alguma de álcool pela goela. Flavinho é o moleque
magricela que ajuda o pai na esquina vendendo menta e há todo esse tempo eu não
os encontrava.
Flavinho aproxima-se
da mesa e me devolve o volume de Capitães da Areia.
– Fica, pode
ficar.– digo com um sinal de positivo nas mãos.
– Por causa da
Rita?
– Quem é Rita?
– A Rita que te
deu esse livro.
– Como tu sabes
que eu ganhei?
– Porque tem
uma dedicatória escrita. “Com todo o meu
amor, Rita”.
– Quem é Rita,
Flavinho?
– Tua namorada?
– Que namorada?
– Ex-namorada?
– Que
ex-namorada?
– A Rita.
– Que Rita?
O moleque me
mostra o livro. A dedicatória, escrita na contracapa.
– É, é um
livro. Eu que te emprestei.
– Essa Rita – aponta pra dedicatória.
– Cadê? Isso é
um livro.
– Aqui! Tá
aqui! Escrito aquiiiiiiii, ó! – Esfrega o dedo em cima do nome: - R-I-T-A.
– Do que tu tá
falando, pirralho?
– Seu
arrombado, aqui, óóó.
– Olha a
língua, filho da puta. Aqui onde?
– Vai se foder.
– Vai se foder
tu.
Encho o copo de
cerveja e viro em um gole. Aquela merda era ruim, trincava meus maxilares e o
primeiro gole sempre arrepiava os pelos do braço mesmo depois de todo esse
tempo. Era como andar de bicicleta, mas você é meio desengonçado.
– Não sei quem
é Rita.
– Toma o livro – empurra-me o objeto.
– Não, tá tudo
tranquilo, pode ficar com o livro. Ele agora é teu.
– O quê?? Não,
ele é teu. A Rita que te deu.
– Moleque, se
eu conhecesse alguma Rita na vida, certeza que ela me daria muitas coisas,
menos um livro dedicado.
– Rárárárárárá.
O moleque me
deu um tapinha malicioso no ombro, balançando o dedo como se tivesse captado uma
piadinha sacana.
– Na verdade eu
tava falando de outras coisas – coço a testa. – Fica com ele, agora o
presente é teu. Fica.
– Mas eu já li.
– Você vai
reler um dia.
– E tu também.
Toma. É da Rita.
– Mas eu lembro
o que tá escrito aí dentro.
– Até o que a
Rita escreveu?
– Pirralho,
quem diabos é Rita?
– Não sei
também. Tua namorada?
– Minha? – Gargalho meio sem controle. –
Eu sei o que tá escrito aí nessa história.
– Tudo de
cabeça?
– De cabeça
não. A gente nunca lembra de cabeça todas as coisas bacanas em um romance.
– Romance?
– É.
– Teu romance
com a Rita?
– Não.
– Que romance?
– É o outro
jeito de se chamar “livro de história”, ”livro de ficção”, essas coisas.
– Ahhhhh tá.
– É muita
coisa, muita página, muita história. O cérebro humano é incapaz de relembrar
todas as informações, senão explodiria. Em livro grande assim a gente só lembra
algumas partes e eu lembro as partes importantes, por isso tô te dando de
presente.
– Mas eu também
não vou lembrar.
– Não mesmo.
Por isso o pessoal nega livro de prosa e aceita de poema.
– Quê? O que é
prosa?
– Prosa é o que
tem nesse livro aí, um monte de parágrafo. Sabe o que é parágrafo, né?
– Aprendi na
escola.
– Legal. Um
monte de parágrafo, texto de história mesmo, sabe?
– Sei sim.
– Pois é. É
muita coisa, o cérebro não relembra tudo, mas grava as melhores partes. Dificilmente
a maioria das pessoas volta a ler prosa, mas facilmente volta a ler poema. Sabe
o que é poema, né?
– Claaaaro.
– Pois é. Poema
a gente volta, poema a gente realmente grava, mas poema a gente gosta de
guardar e de reler e reler e ler de novo outra vez e mais um pouco.
– Então eu
posso ficar com esse livro?
– Claro.
– A Rita não
vai ficar com raiva?
– Eu não sei
quem é Rita, mas acho que ela adoraria que tu ficasses com ele.
– Então eu vou
ficar.
– Fica –
Molhei o bico quando o menino enfiou o livro na cintura e escondeu com a camisa
surrada de um deputado qualquer das eleições de nove anos atrás. – Sabe com o
que eu trabalho, moleque?
– Com o quê?
– Eu escrevo
prosa.
– Rárárárárárá.
– Por que tá
rindo?
– Tu disseste
que ninguém lê essa tal de prosa, só o poema.
– Verdade. Por
isso eu demorei três meses pra voltar aqui: tava sem grana até pra beber.
– Rárárárárárá.
Abanei as mãos.
– Eu tô fadado
a um negócio ruim, meu chapa. O pessoal gosta mesmo é de poema, não de prosa.
Pra conquistar com prosa, cê tem que ter prestígio, credibilidade e ser levado
a sério. Eu só bebo, e isso nem tanto ultimamente. Conheço um camarada que
escreve poema, ele é bom demais no que faz.
– Ele é rico?
– Não, mas com
certeza tem mais dinheiro pra beber do que eu.
– E aí?
– E aí que ele
é reconhecido. Poema é mais legal, moleque. Se tu não escreves poema ou não
bancas o intelectual que escreve prosa, tu não és nada.
– Tu não parece
intelectual.
– Eu sei.
– Tu nem fala
umas palavras difícil.
– Acordar.
– Quê?
– Acordar é uma
palavra difícil.
– Rárárárárárá.
Se tu fosse inteligente, tu escrevia poema e tinha mais dinheiro pra beber. Rárárárárá.
– É verdade.
– Tu só parece
que tá é com sono. Rárárárárárá.
– É
verdade.
– Rárárárárárá.
Prosa não dá em nada. Rárárárárárá.
– É verdade,
camarada.
Puxo o moleque pela
manga da camisa e tiro o livro da cintura dele, coloco na mesa e bebo mais um
pouco.
– Por que tu
fez isso?
– Foda-se. Eu
vou te trazer um livro de poema.
– Mas o livro
era meu.
– Não é mais, tu
riste da prosa, moleque. Ninguém ri da prosa perto de mim.
– Mas tu é um
fodido.
– Fodido é tu,
cheira cola do caralho.
Flavinho me
mostra o dedo do meio.
– Semana que
vem eu trago um livro de poema.
– Tá bom.
– Tá beleza.
– Tu não quer é
se livrar da Rita, né?
– Quem é Rita?
– A Rita. –
Flavinho pega o livro de mim com mãos sorrateiras e abre na contracapa. Aponta
o dedo pra um espaço que tem algo escrito, ou talvez não. Aproximo a cara,
balanço a cabeça negativamente.
– Onde?
– Aqui, seu dá
o cu!!!!!
– Olha o
respeito, moleque.
– Ninguém te
respeita!!
– Tô falando
sobre quem dá o cu.
– Aquiiiiiiiii!
A Riiiiiita! Aquiiiii! – Esfrega o indicador pelo papel.
Pego o livro de
volta e enfio na minha cintura.
– Semana que
vem eu trago.
– Vai ter
dinheiro pra voltar?
– Claro que
vou.
– EU DUVIDO.
– Vou escrever
poema.
– VAI É SE
FODER.
– Dê ao público
o que ele quer.
– RÁRÁRÁRÁRÁ.
– Rima e
compasso.
– AH TÁ.
– Sensibilidade
e existencialismo.
– RÁRÁRÁRÁRÁ.
– Ê, moleque,
vou escrever poema. Vai todo mundo olhar pra mim.
O pai de
Flavinho o chama, os dois acenam para mim e descem a Senador Lemos.
Uma semana depois,
estou de volta com o livro do pirralho.
– Quem é Lem...
Le... Leminique?
– Leminski. Paulo
Leminski.
– Ahhh tá.
Deixa eu ver – agarra o livro, abre na contracapa e começa de novo: –
Rárárárárárárárá.
– Que foi,
moleque?
– “...não te perde por aí. Te amo, Maiara”.
Quem é Maiara?
– Ih, porra, Maiara?
– Aqui escrito.
– Onde?
– Aquiiiiiiii.
– Quem?
– Aquiiiiii
escrito, a dedicatória. M-A-I-A-R-A.
– Ihhhh,
caralho – encho o copo e molho a garganta. – Pirralho maluco.
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