12 de outubro de 2017

Eu não conheço nenhuma Riiiiiiiiiiiita




Há exatos três meses eu não desço gota alguma de álcool pela goela. Flavinho é o moleque magricela que ajuda o pai na esquina vendendo menta e há todo esse tempo eu não os encontrava.
Flavinho aproxima-se da mesa e me devolve o volume de Capitães da Areia.
 Fica, pode ficar.– digo com um sinal de positivo nas mãos.
 Por causa da Rita?
 Quem é Rita?
 A Rita que te deu esse livro.
 Como tu sabes que eu ganhei?
 Porque tem uma dedicatória escrita. “Com todo o meu amor, Rita”.
 Quem é Rita, Flavinho?
 Tua namorada?
 Que namorada?
 Ex-namorada?
 Que ex-namorada?
 A Rita.
 Que Rita?
O moleque me mostra o livro. A dedicatória, escrita na contracapa.
 É, é um livro. Eu que te emprestei.
 Essa Rita – aponta pra dedicatória.
 Cadê? Isso é um livro.
 Aqui! Tá aqui! Escrito aquiiiiiiii, ó! – Esfrega o dedo em cima do nome: - R-I-T-A.
 Do que tu tá falando, pirralho?
 Seu arrombado, aqui, óóó.
 Olha a língua, filho da puta. Aqui onde?
 Vai se foder.
 Vai se foder tu.
Encho o copo de cerveja e viro em um gole. Aquela merda era ruim, trincava meus maxilares e o primeiro gole sempre arrepiava os pelos do braço mesmo depois de todo esse tempo. Era como andar de bicicleta, mas você é meio desengonçado.
 Não sei quem é Rita.
 Toma o livro – empurra-me o objeto.
 Não, tá tudo tranquilo, pode ficar com o livro. Ele agora é teu.
 O quê?? Não, ele é teu. A Rita que te deu.
 Moleque, se eu conhecesse alguma Rita na vida, certeza que ela me daria muitas coisas, menos um livro dedicado.
 Rárárárárárá.
O moleque me deu um tapinha malicioso no ombro, balançando o dedo como se tivesse captado uma piadinha sacana.
 Na verdade eu tava falando de outras coisas – coço a testa. – Fica com ele, agora o presente é teu. Fica.
 Mas eu já li.
 Você vai reler um dia.
 E tu também. Toma. É da Rita.
 Mas eu lembro o que tá escrito aí dentro.
 Até o que a Rita escreveu?
 Pirralho, quem diabos é Rita?
 Não sei também. Tua namorada?
 Minha? – Gargalho meio sem controle. – Eu sei o que tá escrito aí nessa história.
 Tudo de cabeça?
 De cabeça não. A gente nunca lembra de cabeça todas as coisas bacanas em um romance.
 Romance?
 É.
 Teu romance com a Rita?
 Não.
 Que romance?
 É o outro jeito de se chamar “livro de história”, ”livro de ficção”, essas coisas.
 Ahhhhh tá.
 É muita coisa, muita página, muita história. O cérebro humano é incapaz de relembrar todas as informações, senão explodiria. Em livro grande assim a gente só lembra algumas partes e eu lembro as partes importantes, por isso tô te dando de presente.
 Mas eu também não vou lembrar.
 Não mesmo. Por isso o pessoal nega livro de prosa e aceita de poema.
 Quê? O que é prosa?
 Prosa é o que tem nesse livro aí, um monte de parágrafo. Sabe o que é parágrafo, né?
 Aprendi na escola.
 Legal. Um monte de parágrafo, texto de história mesmo, sabe?
 Sei sim.
 Pois é. É muita coisa, o cérebro não relembra tudo, mas grava as melhores partes. Dificilmente a maioria das pessoas volta a ler prosa, mas facilmente volta a ler poema. Sabe o que é poema, né?
 Claaaaro.
 Pois é. Poema a gente volta, poema a gente realmente grava, mas poema a gente gosta de guardar e de reler e reler e ler de novo outra vez e mais um pouco.
 Então eu posso ficar com esse livro?
 Claro.
 A Rita não vai ficar com raiva?
 Eu não sei quem é Rita, mas acho que ela adoraria que tu ficasses com ele.
 Então eu vou ficar.
 Fica – Molhei o bico quando o menino enfiou o livro na cintura e escondeu com a camisa surrada de um deputado qualquer das eleições de nove anos atrás. – Sabe com o que eu trabalho, moleque?
 Com o quê?
 Eu escrevo prosa.
 Rárárárárárá.
 Por que tá rindo?
 Tu disseste que ninguém lê essa tal de prosa, só o poema.
 Verdade. Por isso eu demorei três meses pra voltar aqui: tava sem grana até pra beber.
 Rárárárárárá.
Abanei as mãos.
 Eu tô fadado a um negócio ruim, meu chapa. O pessoal gosta mesmo é de poema, não de prosa. Pra conquistar com prosa, cê tem que ter prestígio, credibilidade e ser levado a sério. Eu só bebo, e isso nem tanto ultimamente. Conheço um camarada que escreve poema, ele é bom demais no que faz.
 Ele é rico?
 Não, mas com certeza tem mais dinheiro pra beber do que eu.
 E aí?
 E aí que ele é reconhecido. Poema é mais legal, moleque. Se tu não escreves poema ou não bancas o intelectual que escreve prosa, tu não és nada.
 Tu não parece intelectual.
 Eu sei.
 Tu nem fala umas palavras difícil.
 Acordar.
 Quê?
 Acordar é uma palavra difícil.
 Rárárárárárá. Se tu fosse inteligente, tu escrevia poema e tinha mais dinheiro pra beber. Rárárárárá.
 É verdade.
 Tu só parece que tá é com sono. Rárárárárárá.
 É verdade.   
 Rárárárárárá. Prosa não dá em nada. Rárárárárárá.
 É verdade, camarada.
Puxo o moleque pela manga da camisa e tiro o livro da cintura dele, coloco na mesa e bebo mais um pouco.
 Por que tu fez isso?
 Foda-se. Eu vou te trazer um livro de poema.
 Mas o livro era meu.
 Não é mais, tu riste da prosa, moleque. Ninguém ri da prosa perto de mim.
 Mas tu é um fodido.
 Fodido é tu, cheira cola do caralho.
Flavinho me mostra o dedo do meio.
 Semana que vem eu trago um livro de poema.
 Tá bom.
 Tá beleza.
 Tu não quer é se livrar da Rita, né?
 Quem é Rita?
 A Rita. – Flavinho pega o livro de mim com mãos sorrateiras e abre na contracapa. Aponta o dedo pra um espaço que tem algo escrito, ou talvez não. Aproximo a cara, balanço a cabeça negativamente.
 Onde?
 Aqui, seu dá o cu!!!!!
 Olha o respeito, moleque.
 Ninguém te respeita!!
 Tô falando sobre quem dá o cu.
 Aquiiiiiiiii! A Riiiiiita! Aquiiiii! – Esfrega o indicador pelo papel.
Pego o livro de volta e enfio na minha cintura.
 Semana que vem eu trago.
 Vai ter dinheiro pra voltar?
 Claro que vou.
 EU DUVIDO.
 Vou escrever poema.
 VAI É SE FODER.
 Dê ao público o que ele quer.
 RÁRÁRÁRÁRÁ.
 Rima e compasso.
 AH TÁ.
 Sensibilidade e existencialismo.
 RÁRÁRÁRÁRÁ.
 Ê, moleque, vou escrever poema. Vai todo mundo olhar pra mim.
O pai de Flavinho o chama, os dois acenam para mim e descem a Senador Lemos.
Uma semana depois, estou de volta com o livro do pirralho.
 Quem é Lem... Le... Leminique?
 Leminski. Paulo Leminski.
 Ahhh tá. Deixa eu ver – agarra o livro, abre na contracapa e começa de novo: – Rárárárárárárárá.
 Que foi, moleque?
 “...não te perde por aí. Te amo, Maiara”. Quem é Maiara?
 Ih, porra, Maiara?
 Aqui escrito.
 Onde?
 Aquiiiiiiii.
 Quem?
 Aquiiiiii escrito, a dedicatória. M-A-I-A-R-A.
 Ihhhh, caralho – encho o copo e molho a garganta. – Pirralho maluco.   


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