29 de outubro de 2017

Eu não sou uma máquina como os rapazes




Os rapazes, eles debatem euforicamente sobre coisas demais, sobre muitas coisas.
Os rapazes, eles agora debatem sobre atitudes femininas do mesmo modo que sanguessugas engravatadas às terças-de-manhã debatiam sobre transporte público e o calor nas grandes metrópoles enquanto gastavam dinheiro com combustível em seus jatos particulares. Enquanto isso, quem caía do céu eram pombos com infartos ou pilotos com milhares de horas de voo que hoje à noite não voltarão para casa.
Os rapazes, eles são experientes, experientes demais, excessivamente experientes, mas estou calado e eles sempre batem em meu ombro, porque estou quieto aqui nesta mesa e eles precisam de alguma forma, desesperadamente, saber o que penso a respeito.
– Não vai beber? – Fernando me pergunta pela terceira vez.
– A doutora disse que eu não posso. – E com mais uma golada na garrafinha de água eu sou obrigado a olhar para ele: Fernando, seus cabelinhos cheios de gel e a barba bem-feita nos maxilares com o barbeiro que custa metade da minha fatura do mês.
– Que frescura, essa doutora manda em ti?
– Ela é pelo menos gostosa? – Questionou Carlos.
Imaginei aquela senhora distinta e extremamente humana, sempre preocupada (verdadeiramente) comigo ou com todos os outros pacientes por debaixo do jaleco. A imagem não formou-se tão bem quanto achei que se formaria, algo como uma tela azul emergencial no Windows surgiu em todo meu vislumbre mental.
Imaginei o quanto queria beber para deixar passar aquela ladainha irritante que os rapazes orquestravam.
Imaginei também os meus rins apodrecendo e se fodendo e a doutora triste. Imaginei a doutora decepcionada.
Aí bebi outro gole e fingi, forçando, entediado, uma risada sacana:
– Com toda a certeza, por que tu achas que tô obedecendo? – Virei a água como um cowboy viraria o velho scotch.
– Meu garoto! – Fernando bateu novamente no meu braço, meio orgulhoso.
– Tá certo, caralho! – Carlos bradou.
– O que que quero saber é: o que achas disso? – Marçal voltou ao assunto, endireitando no rosto os caros óculos de grau que davam a ele aquele tom intelectual que fazia questão de conservar nas rodas da cidade e entre as moças que comia.
– Orgasmos femininos? – E dei de ombros. – Todos temos o direito de tê-los. – E bocejei. Bocejei de verdade, porque eu sempre bocejo de verdade, mesmo quando o assunto me interessava. Aquele assunto, no entanto, dava-me nos nervos.
– Não, espertão. O que tu achas sobre essas minas que fingem prazer?
– Um bando de mentirosa. – Fernando estalou os lábios.
– Mulher não me engana não, caralho. – Carlos bateu na mesa e riu. Virou o quadragésimo sétimo copo.
– Acho de boas, habilidade difícil de se adquirir e administrar. – Respondi por fim, enquanto Calos e Fernando davam tapinhas um no outro como dois eternos camaradas invioláveis.
– Tá, mas não achas ardiloso? – Marçal moveu as mãos. Ele sempre movia as mãos quando tentava argumentar ou impressionar alguém com seus argumentos bem estruturados de um quase-formado-historiador.
– Ardiloso?
– É. Tu estás lá, de pau duro, ela pulando em cima de ti e tu sabes que ela tá fingindo.
– Como é que eu sei que ela tá fingindo? – Bocejo de novo.
Olho no relógio: dez e quarenta da noite.
– Ela tá gemendo e não tá lubrificada. – Pontuou Marçal, convicto.
– Mas aí a camisinha ajuda, papai. – Fernando ergue o dedo.
Carlos faz uma cara estranha:
– Camisinha?
Marçal ignora os dois e eu encaro Fernando por três segundos, meio perdido, antes de voltar ao Marçal.
– Se eu sei que ela tá mentindo e ela tá fingindo, eu paro ou sei lá, deixo pra próxima. – E bebi um pouco mais da minha água antes que eles explodissem em revolta e me olhassem torto.
– Isso é sério? – Marçal exige silêncio dos outros dois, que estão eufóricos demais acotovelando-se como macacos.
– É. Mas no geral eu acho um esforço louvável. A moça com quem to transando: é desconhecida ou namorada?
– Tanto faz. Qual a diferença?
– Se for desconhecida, as chances de ela parar e dar o fora são maiores. Se for namorada, eu vou me sentir importante.
– Importante por que ela tá fingindo? – Carlos pronunciou como uma injúria.
– Se uma mulher finge enquanto tá contigo, é no mínimo porque ela se preocupa excessivamente a ponto de não te falar a verdade, porque aparentemente tu vais ficar magoadão com os fatos. – Girei a tampinha da garrafa. – No mínimo ela se importa com o teu bem-estar psicológico, com a tua virilidade que não pode ser danificada.
– O que isso significa? – Marçal inclina-se sobre os joelhos, interessado em mim como se eu fosse um animal exótico.
– Significa que se uma mulher mente pra ti, ela com certeza se preocupa contigo ou ela tá tão acostumada a fazer aquilo com caras que nunca a satisfazem que já não nota que tá fodendo por foder e não pra ganhar prazer.
– Continua. – Marçal sorri um pouquinho.
Os dois outros macacos se acotovelavam.
– Se uma mulher mente pra ti e finge que foi bom, talvez ela se preocupe contigo... Talvez ela se preocupe em não destruir o teu moral. O que é louvável: saber que a moça se importa com você a esse ponto, mas também é errado, né?
– Por que é errado? – Os três perguntam.
– Porque ela nem tá excitada, pra início de conversa. E porque ela tá mentindo só pra te deixar bem.
– Viu? Eu disse. – Fernando cutucou Carlos e balançou a cabeça para Marçal. – Mulher não me engana não, porra.
– Não ligo se não tiver lubrificada, mando bala assim mesmo.
Os dois macacos brindaram.
Os dois macacos riram.
Marçal balançou minimamente a cabeça e me perguntou:
– Então pra ti, ser enganado é privilégio?
– É consideração, em algum nível.
– Então é bom?
– É ruim.
– Já foste enganado?
– Com toda a certeza que sim.
– Te disseram?
– Precisa?
– E como tens tanta certeza?
– Não é possível que eu tenha sido eficiente todas as vezes.
– Tu não costuma ser?
– Não é isso.
– Então o que é?
– É, então o que é? – Fernando pergunta.
– Nunca me enganaram. – Carlos gargalhou, convicto demais.
– Mulher é bicho mentiroso, mano. – Pontua Fernando.
– Eu não sou uma máquina de fazer sexo gostoso como vocês, camaradas. – Destampo a garrafa, bebo o restante e peço outra ao garçom. – Então provavelmente não satisfiz todas elas, alguma devo ter deixado passar.
– Tu és fresco? – Fernando questiona.
– Ê, caralho. – Carlos continua.
– Humm. – Marçal me olha de cima, sempre de cima com seus óculos arredondados e ingleses, sua barbicha altiva, aquela que mostrava o quanto ele refletia sobre os assuntos do mundo.
– Tu gostas que elas mintam pra ti?
– Eu prefiro que elas digam a verdade na hora e que parem ao invés de fingir.
– Mas disseste que achava consideração que elas finjam.
– Disse que julgava consideração, sim, em algum nível. Não disse que achava certo.
– Tu tá é fazendo a parada errada, caralho. Tem que aprender mais. – Diz um deles.
– Tem que aprender mais. – Concorda o outro.
– Oh. – Coço a cabeça, outra vez bocejando. – Verdade, tenho que aprender mais com vocês.
A água chega.
Embora me olhem desconfiados, a conversa progride e são onze horas agora. A-ha canta a música de sempre no telão do bar e os rapazes vão gradativamente enchendo a cara.
Às onze e quinze eles começam a falar sobre pelos. Marçal é o que tem mais teorias e opiniões sobre os pelos, argumenta uma série de pontos e ressalvas a respeito da conduta do século XXI em contraponto à conduta do século XIV e faz uma analogia antropológica extremamente rebuscada com o mosteiro tal em outro século tal que possuía freiras com hábitos diferentes e coloca a questão em pauta mediante ao conservadorismo liberal do século XVIII e as influências nas correntes femininas do século seguinte e como isso formatou o posicionamento da mulher no século XX e a essa altura a moça da mesa ao lado se aproxima e diz concordar com Marçal e Marçal enche o copo dela e diz que não se importa, diz que as mulheres estão certas e diz o quão atraído sente-se por mulheres que possuem voz e enquanto Marçal fala, fala, fala, Fernando e Carlos mantém-se calados, porque quando Marçal fala eles o respeitam e o glorificam ou eles fingem entender e fingem concordar, por mais que discordem, até porque fora o próprio Carlos quem dissera firmemente, antes da garota da mesa ao lado juntar-se à nossa:
– Mulher pra mim tem que tá aparadinha.
– Pra mim também, porra. Não me vem com aquele matagal todo, não sou agricultor, caralho.
Todos os três riram.
Até Marçal chegou a comentar:
– Uma vez tava lá no Oito e conheci uma moleca de Nutrição. Depois da quarta catuaba levei ela lá pra casa e quando tirei a calcinha dela, puta que o pariu...
– O que que era? – Fernando ria.
– O que tinha lá? – Carlos enchia o copo.
– Porra, parecia que eu era um Bandeirante abrindo caminho pro interior do país.
Os dois espocaram de rir.
– E quando cheguei lá – prosseguiu Marçal – o cheiro era foda, moleque. Foda!
– O que fizeste?
– O que fizeste?
– Deixei meu nariz longe de lá e só torei, né? Mas já tava quase vomitando.
Fernando balançou a cabeça, espocando de rir. Carlos parecia verde, quase a ponto de correr ao banheiro.
Mas por sorte a garota da mesa ao lado não escutou o que Marçal realmente julgava das condutas femininas e dos aromas femininos.
– E tu: o que achas disso? – Marçal me perguntou enquanto nossa mesa não fora agraciada com o prêmio da noite.
– Disso o quê?
– O pelo das libertárias. – Fernando fez a piada que explodiu Carlos em risadas.
– Eu acho que tá de boas.
– De boas?
– É, de boas?
– De boas, porra?
– De boas.
– Tem certeza?
Para Marçal, respostas curtas eram uma ofensa. Se você não problematizasse e não tecesse comentários... Se você não tivesse comentário algum a fazer baseado em todos os livros que ele leu para o TCC, embora nunca tenha finalizado o TCC, embora nunca tenha sequer finalizado o curso, então você não era lá muito digno de se conversar.
As colegas de Marçal, sempre que estavam por perto, diziam-me, categoricamente:
– Tinha que ser pisciano, mano.
E todas caíam em gargalhadas e todas riam e eu fazia uma piadinha concordando.
Mas Marçal não era tão engraçado quanto as colegas: ele dizia sempre que tinha o ascendente em Dinossaurus e que astrologia não era ciência. Não que eu de todo discordasse, mas debochar já não era tão divertido assim. Quando de mim caçoavam e dos meus bocejos menosprezavam, dizendo que odiavam homens lentos, pelo menos as colegas de Marçal eram mais divertidas.
Marçal nem tanto, não com aqueles óculos alá John Lennon.
– É, pra mim tá de boas. – Respondi.
E tava mesmo.
E sem mais argumentos porque àquela altura da noite, às onze e dezessete, antes da garota da mesa ao lado unir-se ao grupo, eu esticava os pés e bebia a porra da água como se tivesse algum sabor, um sabor agradável.
Aí a garota chegou. Sentou-se ao lado de Marçal. Aí Marçal metralhou e jogou sobre a mesa todos os seus atributos usando apenas a habilidade da voz sábia e melódica. E a garota que Marçal arranjara foi a atração pelo resto da noite, tanto para ele quanto para os dois macacos.
Tanta água na minha corrente sanguínea finalmente fez efeito e levantei para ir ao banheiro. Tirei-a dos joelhos e quando saí de lá topei com a garota. Ela sorriu na minha direção, esperando em uma fila quilométrica para esvaziar a bexiga.
– Ei, moça.
– Oiii. – Quase como os rapazes, ela também estava bêbada, mas nem tanto.
– Eu queria te dizer uma coisa, mas tô meio...
– Ahhh.
– Não vou dar em cima de ti, nem nada. Relaxa.
– É o que todos dizem, né?
E as moças da frente concordaram com um comentário debochado e outro.
– Pois é, é sim. – Concordei, rindo de volta. Aí bocejei rápido antes de continuar. – Na verdade, é um aviso importante.
– Fala logo, mana.
– Meu amigo Marçal ali, sabe?
– Simm, sei. O que que tem?
– Ele brigou com a namorada ontem. Brigaram. Terminaram. – Pontuei com cada dedo. – Então talvez ele esteja revoltado e com certeza eles voltarão.
– Mas eles terminaram, né?
– Uhum, só durante as primeiras 72h. Depois ela volta correndo. Ou ele volta correndo. Sempre variam ou revezam.
– Por que estás me dizendo isso?
– Porque ele tá bêbado e já tá fazendo merda de novo. Vai por mim, não é a primeira vez.
– Ahhhh, é?
– É.
– Macho, mana. Tinha que ser macho. – Uma delas disse.
– Pula fora, manaaa! – Outra delas falou.
– Mas ele é bonitinho e tá solteiro, lembra disso. – Comentou a moça atrás da garota.
Ela realmente hesitou. Ela realmente pensou duas ou três ou quatro vezes.
– Só tô dizendo isso porque a namorada dele é legal e a briga de ontem foi besteira, ela não merece isso.
– Ok, valeu pelo aviso.
A menina da frente entrou no banheiro e a garota ficou lá, de braços cruzados, meio pensativa e meio eufórica com os comentários que a moça de trás fazia.
Quando voltei à mesa e não muito tempo depois a garota também, Marçal debatia sobre o quanto o modo de produção atual contribuía para o estopim da depressão e da ansiedade. O próprio Marçal era cheio de ansiedades e depressões, mas foi no meu ombro que ele tocou e riu quando discorreu seus argumentos e todos na mesa riram. Inclusive fingi rir, divertido, fiz uma piadinha sobre lágrimas e reidratei com minha água.
Em seguida, a moça avisou que precisava ir e Marçal tentou convencê-la a ficar. Os dois se afastaram da mesa, foram para fora. Marçal acendeu um cigarro e pelos quinze minutos seguintes variava entre convencê-la a ficar ou convencê-la a beijá-lo.
No fim, o beijo aconteceu e ele conseguiu o número da dama. Ela foi embora e assentiu pra mim, com um sorriso meio grato. Esperava eu que a garota nunca descobrisse que nem namorada Marçal possuía, embora no fundo soubesse que ele venceria a batalha, que ele a convenceria no fim de tudo, pois agora possuía o número dela e possuía, principalmente, aquilo pelo qual tanto se orgulhava, aquilo que chamava de
o poder da retórica.
Meia-noite e o bar fecha. Somos expulsos junto com todos os outros e os rapazes seguem bêbados para casa. Ao longo do caminho, ainda discorrem sobre a conquista de Marçal e sobre o quanto até fariam um esforcinho para entrar na Cláudia Ohana.
– O que tu achas da Cláudia Ohana? – Marçal inclina-se sobre mim com aqueles óculos redondos, no meio da rua mesmo.
– Nunca mais vi uma novela com ela.
– Sobre a mata da Cláudia Ohana, caralho!!! – Esbraveja Carlos.
– Ah.
– “Ah” o quê, caralho? O que tu achas?
– Eu acho de boas.
Eles riem e cospem em mim. Metaforicamente, é claro.
Quando nos separamos, cada um subindo no último ônibus de volta pra casa ou dentro de algum táxi negociado, lá pela Presidente Vargas mesmo, eles ainda estão me xingando por ser um pau mole e complacente.
Quando chego em casa, Anastácia me abraça e pergunta “como é que foi com os meninos?”. Eu digo que foi de boas, digo que estão bem e que continuam os mesmos. Ela entende como uma coisa boa.
Certo mesmo e aliviado estou eu, ao perceber que os bocejos pararam.
Quando saio do banho, ela me diz “vem cá” e eu vou, prontamente, não tão lento quanto as colegas de Marçal julgariam. Anastácia está nua na cama, as pernas abertas, convidativas, as mãos roçando na cintura, coçando as auréolas dos seios devagar, sem a pressa do cotidiano ou o desespero dos solitários. Ali estão suas pernas: magricelas e sinuosas, sempre sinuosas, com linhas às vezes íngremes demais, às vezes retas demais. O suficientemente retas. Sorrio com a imagem dela entre os travesseiros e os lençóis e deito na cama, pousando a cabeça exatamente sobre ela, exatamente entre as pernas, onde ela tem agora um pequeno tufo de pelos não aparados.
Anastácia às vezes não raspava as axilas, às vezes deixava os tufos dali tão altos quanto os tufos debaixo e os rapazes, ah, os rapazes sabiam das axilas, mas nunca diziam nada, os rapazes nunca falavam de Anastácia comigo, nunca perguntavam sobre ela.
Os dedos compridos acariciam meus cabelos enquanto eu esfrego o rosto entre os cabelos dela, fechando os olhos com o leve roçar da virilha, com o leve roçar que vai em volta dos grandes lábios até o meio das nádegas e com o leve roçar sobre meus lábios, sobre a pele do meu rosto.
No instante que começo a amá-la, lembro que não, eu não sou uma máquina perfeita e insaciável como os rapazes, não, não como os rapazes. Porém havia um lugar para regressar todas as noites, todas as tardes e todas as manhãs, às seis em ponto, quando o Sol acabava de sair ainda do horizonte de dentro d’água.
Eu não era uma máquina incansável e eficaz como os rapazes, não, não como os rapazes. Não tinha muito interesse em ser.
Mas tava de boas.
Porque todas as noites havia a quem voltar e onde ser feliz.
E sim:
tava de boas. 






12 de outubro de 2017

Eu não conheço nenhuma Riiiiiiiiiiiita




Há exatos três meses eu não desço gota alguma de álcool pela goela. Flavinho é o moleque magricela que ajuda o pai na esquina vendendo menta e há todo esse tempo eu não os encontrava.
Flavinho aproxima-se da mesa e me devolve o volume de Capitães da Areia.
 Fica, pode ficar.– digo com um sinal de positivo nas mãos.
 Por causa da Rita?
 Quem é Rita?
 A Rita que te deu esse livro.
 Como tu sabes que eu ganhei?
 Porque tem uma dedicatória escrita. “Com todo o meu amor, Rita”.
 Quem é Rita, Flavinho?
 Tua namorada?
 Que namorada?
 Ex-namorada?
 Que ex-namorada?
 A Rita.
 Que Rita?
O moleque me mostra o livro. A dedicatória, escrita na contracapa.
 É, é um livro. Eu que te emprestei.
 Essa Rita – aponta pra dedicatória.
 Cadê? Isso é um livro.
 Aqui! Tá aqui! Escrito aquiiiiiiii, ó! – Esfrega o dedo em cima do nome: - R-I-T-A.
 Do que tu tá falando, pirralho?
 Seu arrombado, aqui, óóó.
 Olha a língua, filho da puta. Aqui onde?
 Vai se foder.
 Vai se foder tu.
Encho o copo de cerveja e viro em um gole. Aquela merda era ruim, trincava meus maxilares e o primeiro gole sempre arrepiava os pelos do braço mesmo depois de todo esse tempo. Era como andar de bicicleta, mas você é meio desengonçado.
 Não sei quem é Rita.
 Toma o livro – empurra-me o objeto.
 Não, tá tudo tranquilo, pode ficar com o livro. Ele agora é teu.
 O quê?? Não, ele é teu. A Rita que te deu.
 Moleque, se eu conhecesse alguma Rita na vida, certeza que ela me daria muitas coisas, menos um livro dedicado.
 Rárárárárárá.
O moleque me deu um tapinha malicioso no ombro, balançando o dedo como se tivesse captado uma piadinha sacana.
 Na verdade eu tava falando de outras coisas – coço a testa. – Fica com ele, agora o presente é teu. Fica.
 Mas eu já li.
 Você vai reler um dia.
 E tu também. Toma. É da Rita.
 Mas eu lembro o que tá escrito aí dentro.
 Até o que a Rita escreveu?
 Pirralho, quem diabos é Rita?
 Não sei também. Tua namorada?
 Minha? – Gargalho meio sem controle. – Eu sei o que tá escrito aí nessa história.
 Tudo de cabeça?
 De cabeça não. A gente nunca lembra de cabeça todas as coisas bacanas em um romance.
 Romance?
 É.
 Teu romance com a Rita?
 Não.
 Que romance?
 É o outro jeito de se chamar “livro de história”, ”livro de ficção”, essas coisas.
 Ahhhhh tá.
 É muita coisa, muita página, muita história. O cérebro humano é incapaz de relembrar todas as informações, senão explodiria. Em livro grande assim a gente só lembra algumas partes e eu lembro as partes importantes, por isso tô te dando de presente.
 Mas eu também não vou lembrar.
 Não mesmo. Por isso o pessoal nega livro de prosa e aceita de poema.
 Quê? O que é prosa?
 Prosa é o que tem nesse livro aí, um monte de parágrafo. Sabe o que é parágrafo, né?
 Aprendi na escola.
 Legal. Um monte de parágrafo, texto de história mesmo, sabe?
 Sei sim.
 Pois é. É muita coisa, o cérebro não relembra tudo, mas grava as melhores partes. Dificilmente a maioria das pessoas volta a ler prosa, mas facilmente volta a ler poema. Sabe o que é poema, né?
 Claaaaro.
 Pois é. Poema a gente volta, poema a gente realmente grava, mas poema a gente gosta de guardar e de reler e reler e ler de novo outra vez e mais um pouco.
 Então eu posso ficar com esse livro?
 Claro.
 A Rita não vai ficar com raiva?
 Eu não sei quem é Rita, mas acho que ela adoraria que tu ficasses com ele.
 Então eu vou ficar.
 Fica – Molhei o bico quando o menino enfiou o livro na cintura e escondeu com a camisa surrada de um deputado qualquer das eleições de nove anos atrás. – Sabe com o que eu trabalho, moleque?
 Com o quê?
 Eu escrevo prosa.
 Rárárárárárá.
 Por que tá rindo?
 Tu disseste que ninguém lê essa tal de prosa, só o poema.
 Verdade. Por isso eu demorei três meses pra voltar aqui: tava sem grana até pra beber.
 Rárárárárárá.
Abanei as mãos.
 Eu tô fadado a um negócio ruim, meu chapa. O pessoal gosta mesmo é de poema, não de prosa. Pra conquistar com prosa, cê tem que ter prestígio, credibilidade e ser levado a sério. Eu só bebo, e isso nem tanto ultimamente. Conheço um camarada que escreve poema, ele é bom demais no que faz.
 Ele é rico?
 Não, mas com certeza tem mais dinheiro pra beber do que eu.
 E aí?
 E aí que ele é reconhecido. Poema é mais legal, moleque. Se tu não escreves poema ou não bancas o intelectual que escreve prosa, tu não és nada.
 Tu não parece intelectual.
 Eu sei.
 Tu nem fala umas palavras difícil.
 Acordar.
 Quê?
 Acordar é uma palavra difícil.
 Rárárárárárá. Se tu fosse inteligente, tu escrevia poema e tinha mais dinheiro pra beber. Rárárárárá.
 É verdade.
 Tu só parece que tá é com sono. Rárárárárárá.
 É verdade.   
 Rárárárárárá. Prosa não dá em nada. Rárárárárárá.
 É verdade, camarada.
Puxo o moleque pela manga da camisa e tiro o livro da cintura dele, coloco na mesa e bebo mais um pouco.
 Por que tu fez isso?
 Foda-se. Eu vou te trazer um livro de poema.
 Mas o livro era meu.
 Não é mais, tu riste da prosa, moleque. Ninguém ri da prosa perto de mim.
 Mas tu é um fodido.
 Fodido é tu, cheira cola do caralho.
Flavinho me mostra o dedo do meio.
 Semana que vem eu trago um livro de poema.
 Tá bom.
 Tá beleza.
 Tu não quer é se livrar da Rita, né?
 Quem é Rita?
 A Rita. – Flavinho pega o livro de mim com mãos sorrateiras e abre na contracapa. Aponta o dedo pra um espaço que tem algo escrito, ou talvez não. Aproximo a cara, balanço a cabeça negativamente.
 Onde?
 Aqui, seu dá o cu!!!!!
 Olha o respeito, moleque.
 Ninguém te respeita!!
 Tô falando sobre quem dá o cu.
 Aquiiiiiiiii! A Riiiiiita! Aquiiiii! – Esfrega o indicador pelo papel.
Pego o livro de volta e enfio na minha cintura.
 Semana que vem eu trago.
 Vai ter dinheiro pra voltar?
 Claro que vou.
 EU DUVIDO.
 Vou escrever poema.
 VAI É SE FODER.
 Dê ao público o que ele quer.
 RÁRÁRÁRÁRÁ.
 Rima e compasso.
 AH TÁ.
 Sensibilidade e existencialismo.
 RÁRÁRÁRÁRÁ.
 Ê, moleque, vou escrever poema. Vai todo mundo olhar pra mim.
O pai de Flavinho o chama, os dois acenam para mim e descem a Senador Lemos.
Uma semana depois, estou de volta com o livro do pirralho.
 Quem é Lem... Le... Leminique?
 Leminski. Paulo Leminski.
 Ahhh tá. Deixa eu ver – agarra o livro, abre na contracapa e começa de novo: – Rárárárárárárárá.
 Que foi, moleque?
 “...não te perde por aí. Te amo, Maiara”. Quem é Maiara?
 Ih, porra, Maiara?
 Aqui escrito.
 Onde?
 Aquiiiiiiii.
 Quem?
 Aquiiiiii escrito, a dedicatória. M-A-I-A-R-A.
 Ihhhh, caralho – encho o copo e molho a garganta. – Pirralho maluco.   


5 de outubro de 2017

[Parte II] segundo, um frame






Ovacionada, você subiu ao palco.
As crianças te amam: batem palmas, pulam mesmo sentadas, gritam, vibram por seu nome. As crianças te amam e isso é coisa tão rara hoje em dia, conquistar o coração desses pequenos. Uma vez, no entanto, você me disse que conquistar as pessoas era fácil, difícil era saber lidar e mantê-las por perto. Difícil era saber lidar com e manter todo este amor vivo, amor que eu vi cada uma delas ter por você na primeira semana de estágio e meses depois ainda continuar quase o mesmo – só que um pouquinho maior, desses pouquinhos que mudam tudo.
Você então está no palco e faz uma reverência como uma atriz diante do rei ao apresentar o espetáculo que ele mesmo encomendou. Você tira o papel do bolso de trás da calça jeans azul que contrasta com aquele par de alpercatas pretas e cafoninhas que eu te disse pra comprar. Você comprou, três dias depois você comprou.
A nossa camisa do Star Wars fica grande em você – e, consequentemente, gigantesca em mim. É quarta-feira agora, então, por direito, é o seu dia de usá-la. Tem as mangas dobradinhas realçando os bracinhos finos e a tatuagem do Marvin-Androide-Paranoide que ainda tá cicatrizando. Então é nesse instante que você olha pra mim e, eu sei, deve ter sido difícil me identificar sentado no chão no meio de todos aqueles pirralhinhos e pirralhinhas que aos quatro anos de idade já têm quase o dobro da minha altura, mas é verdade: você olha para mim, no meio de tanta gente para olhar, é para mim que você olha com aquele último suspiro de hesitação, de nervosismo, como se não fosse boa no que faz ou como se não fosse melhor que eu em um número infinito de coisas.
Estou sorrindo daqui, vibrando com a Gabizinha ao meu lado e usando a máscara de raposa que eles me deram. Aí eu te faço um hang loose e balanço a cabeça positivamente, tão empolgado quanto a sua plateia original.
Você dá um bom dia, cumprimenta as professoras, coordenadoras e todas aquelas a quem você precisa cumprimentar – é isso ou não teremos poder monetário para as coxinhas todas as quintas à tarde. Depois cumprimenta os pais e por fim dá um alô à criançada.
Elas te aplaudem.
Elas te amam.
Você dá aquele sorrisinho nervoso outra vez, o aparelho transparente brilhando entre os dentes e o cabelo castanho claro crescendo a todo vapor (me perdoa, eu não vou te tratar como Jordana dessa vez, vou te tratar como
você).
E você está no palco, papel em punho e sorrisinho inseguro no rosto. Anuncia a leitura:
“é Pedro Bandeira”,
você diz,
“minha mãe sempre lia pra mim”.
As crianças entram num respeitoso e admirável estado de silêncio quando você começa a falar. É quando sua voz ressoa em todo aquele pequeno salão nos fundos da escolinha que o nervosismo aí dentro dissipa e a hesitação também.
As crianças te amam, aquele amor puro, verdadeiro e gratuito que você mencionou no dia em que optou por elas ao invés do estágio que te massacraria a alma em troca de uma conta numerosa.
“eu preciso disso pra mim”,
você disse,
“eu preciso, sabe?”.
E eu disse
“vá em frente”
e você foi.
Você está aqui agora: lendo Pedro Bandeira, sendo ovacionada por todos aqueles por quem optou lutar.
Eu espero que você saiba que há alguém por aqui orgulhoso de suas escolhas e de quem você se tornou.
Espero que daquele palco tenha sido minimamente possível enxergar que alguém tem te dito
“parabéns”
mesmo que silenciosamente, mesmo que na memória ou mesmo à distância.
As crianças e as professoras e as coordenadoras e as mães e os pais e os avós e eu: todos te aplaudem ao fim da leitura. Pedro Bandeira não sabe a visão de tamanha graça e tamanha generosidade que perdeu naquele momento.
Você esteve linda, tão linda.
E eu espero que saiba disso.