30 de julho de 2017

Sábado-Domingo

SÁBADO-DOMINGO

Dias sem ponta que
me enlaço nos vendavais
do teu rosto
a me procurar como um
cão farejador desse teu
perfume
a me procurar como um
arrependido condenado dessa tua
saudade
a me procurar como um
embuste viciado desse teu
nome.

Dias sem ponta que
me acorrento nos nós
dos teus cabelos
a me massacrar como a
guerra beija as mães
a me massacrar como a
morte consola os pais
e
a me massacrar como a
tua
voz ressoa em meus ouvidos.

Dessa risada gutural no
brilho
cedo e matinal
quando você diz "eu
tenho que ir
embora" e eu te
seguro
e digo "não
vai" e é
domingo agora

esse
dia sem ponta enlaçado
na memória quando com
essa risada gutural
você
responde que "tá
bom, eu
fico, meu amor".

"Meu amor" você
disse e
ficou mesmo.


(Felipe Santiago)



29 de julho de 2017

Dos vasos de três gerações



A mãe de Júlia sempre quis meu couro.
A mãe de Júlia tiraria o meu couro se naquele momento eu não obedecesse às ordens que ela gritava na minha direção, enquanto segurava o vaso de flores que estava há três gerações na família delas:
- Sai de perto da Júlia, Felipe!
E eu saí.
Recuei alguns passos com as mãos levantadas para cima enquanto não sabia o que fazer, como fazer ou quando fazer. Eu já devia ter escrito sobre isso alguma vez, em algum lugar, em alguma de minhas infantis narrativas sobre bêbados perdidos ou sobre rapazes britânicos atormentados por anjos sádicos, sedentos por vingança e protegidos por anjos de curvas esbeltas e de fidelidade duvidosa; eu já devia ter escrito utilizando aquele mesmo recurso cinematográfico de quando uma bomba explode próximo ao protagonista e por dez segundos um zumbido toma conta da sala de cinema, mostrando a perspectiva dele, enquanto todas as explosões ao redor, toda a gritaria, todo o sangue e toda a saraivada de tiros corta o céu acima e o protagonista, perdido, atordoado e desequilibrado, cambaleia pelo chão, agachado com as mãos no ouvido, tentando expulsar o zumbido no tímpano que o impede de caminhar e que o desorienta.
Enquanto a mãe de Júlia gritava, eu era o protagonista com o zumbido no ouvido. A diferença é que eu não sabia se o zumbido era a voz metálica de sotaque irritante nos meus ouvidos, o grito de Júlia atrás dela enquanto a irmã a segurava pelos braços ou a porra do meu descontrole emocional correndo pelas veias, deixando-me agressivo, animalesco, apontando um dedo reto e nem tão imponente na cara da mulher que eu julgava amar ou de outras pessoas que só queriam protegê-la.
A mãe de Júlia tinha um vaso na mão, aquela senhora distinta de classe média com cabelo bem alisado e agenda sempre marcada na clínica dermatológica para limpar a pele e as manchas no rosto. O vaso estava há três gerações na família de Júlia e agora estava prestes a voar na minha cara.
O zumbido continuava.
Eu não temia a porra de vaso algum espatifando-se na minha cara já não tão agraciada pela genética.
Eu temia pela segurança do vaso.
Então levantei as mãos e recuei alguns passos, essa merda passara dos limites.
Reassumi o controle de mim.
- Eu quero que tua saias agora daqui de casa ou eu vou chamar a polícia, Felipe!
- Vish.
Do outro lado da sala de estar, Júlia gritava:
- EU VOU TE MATAR, SEU MERDA. EU TE ODEIO, SEU MERDA. EU VOU ACABAR CONTIGO, SEU VIADINHO DE MERDA.
- Oh.
A mãe de Júlia, que agora eu já poderia considerar chamar de “ex-sogra”, ergueu a mão e arremessou o vaso. Eu já havia recuado e desistido de seguir em frente quando a velha desgraçada atirou o vaso na minha direção, eu amava o desenho em alto relevo que as cidreiras coloridas rodopiavam de maneira helicoidal por toda a porcelana branca, decorada com pequenos pontilhados de pétalas vermelhas. Pétalas que lembravam pétalas de cerejeiras, mas que não eram cerejeiras porque eram vermelhas e pétalas de cerejeiras seriam se não fossem apenas pétalas vermelhas.
Aí o vaso que estava há três gerações na família foi arremessado.
O problema é que ele passou a três pernas de distância da minha cabeça e num ângulo muito aberto, em uma direção deveras distante em um sentido deveras oposto. Quando ele se espatifou contra a vidraça da janela corrida de vidro que dava acesso à varanda, meu olhar apenas o acompanhou. O som de porcelana contra vidro e de vidro quebrando e de porcelana atravessando e explodindo logo em seguida não melhorou muito o zumbido em meus ouvidos, que agora já estava aliviando. Na verdade, o choque sonoro da explosão ecoou por todo o condomínio. Alguém lá fora gritou e o volume das televisões nos apartamentos de cima até diminuiu. Com isso, todos escutavam a voz de Júlia que dizia:
- EU VOU FODER COM A TUA RAÇA AGORA, DESGRAÇADO. SEU MERDA DO CARALHO, EU VOU TE FODER BONITO. VEM PRA CÁ SE TU ÉS HOMEM, VEM PRA CÁ AGORA.
- Eu iria, mas a tua mãe não deixa. – Respondi, mas como não fui capaz de ouvir minha própria voz, julguei ter dito fraco e inaudível demais.
- O QUE TU FALASTE, SEU ARROMABADO DO CARALHO? REPETE! REPETE! REPETE AGORA!
- O quê??! – A mãe de Júlia gritou.
- Quê o quê, gente?
Eu não conseguia tirar os olhos da vidraça.
E havia o vaso.
Três gerações de vida e o vaso não existia mais.
Eu gostava das pétalas vermelhas que seriam pétalas de cerejeira se fossem pétalas rosas e não pétalas vermelhas sobre a porcelana branca envolta por cidreiras helicoidais em alto relevo.
- FALA DE NOVO, CARALHO! – Julia se debatia nos braços da irmã.
- Seu filho da puta, eu vou chamar a polícia! – A mãe de Júlia gritou.
- EU IRIA AÍ, MAS A TUA MÃE NÃO DEIXA. – Respondi, com as mãos no ouvido para afastar o zumbido que não era de fato real, apenas psicológico, mas se eu mesmo escutara minha voz, então elas igualmente escutaram.
- ENTÃO VEM, CARALHO.
- Eu vou chamar a polícia! – Disse a velha já com o celular em mãos.
- A senhora quebrou o vaso, dona Lourdes.
Acho que àquela altura eu não poderia mais chama-la de sogrinha.
- EU VOU TE MATAR!
Aí a mãe de Júlia ligou para a polícia:
- Moço, pelo amor de Deus, ele não quer sair aqui de cas...
- Oh. Meu Deus, gente, vocês quebraram o vaso.
E recuei mais três passos na direção dos cacos de vidro.
Quando olhei para fora, havia gente demais nas janelas dos prédios vizinhos. Acenei para eles e agachei-me para pegar o que sobrara do vaso.
Três malditas gerações para ser arremessado em uma direção tão errônea, tão aleatória.
- O QUE TU TÁ FAZENDO, SEU COVARDE! VEM SER HOMEM AGORA, VEM! ME LARGA, JANAÍNA.
Janaína era a irmã de Júlia. Sete anos mais nova, vinte centímetros mais alta e assídua jogadora de LoL. Janaína entendia todas as referências que minhas piadas ocultistas e nerds continham, Júlia não. Júlia sempre revirava os olhos.
- Meu Deus, moço, ele não quer sair da nossa casa e agora... Ahhhhh, moço, ele tá pegando um caco de vidro pra...
- Não, espera, moço, eu só tô recolhendo o vaso.
- FALA MAIS ALTO, COVARDE!
- Mandem logo alguém, socorro, meu Deus!
- Gente, o vaso...
- EU VOU TE MATAR, SEU MERDA.
- Ah.
- Mandem logo a viatura...!
- Não.
- CAI NO PAU, COVARDE!
- Cai no quê?
- Já tá vindo, graças a Deus, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, graças ao Sagrado Coração de Jesus, meu amado São Benedito eles já tão mandando uma viat...
- Oh, ah, não...
- EU VOU TE MATAR, CARALHO. EU VOU TE MATAR, PORRA. SEGUNDA-FEIRA TODO VAI VER QUEM TU É DE VERDAD...
- Oh, gente.
- Felipe, vai embora daqui, por favor! – Foi Janaína quem gritou agora.
- Jana, mano, o vaso.
- Foda-se o vaso, dá o fora daqui, Felip...
- EU VOU TE MATAAAAAAR!
- Eles vão te prender, seu monstro filho da puta!
Certo.
Eis o clímax da situação e o momento em que os mais jovens devem ser ouvidos:
Guardei no bolso o último pedaço do vaso e corri para a porta. Júlia se desfez dos braços da irmã, mas a essa altura eu já tinha fechado a porta e corria pelos corredores e escadas abaixo enquanto a minha loirinha de mechas azuladas vinha atrás de mim com algo nas mãos que eu não tinha certeza ser uma tesoura, caco de vidro ou uma versão integral da llíada de Homero.
Quando saí do prédio correndo feito um condenado e passando pelos prédios vizinhos, contornando carros e despistando Júlia-Veloz-e-Furiosa atrás de mim, as luzes da polícia já piscavam na entrada do condomínio. Fui até eles com as mãos balançando e abracei o primeiro policial que encontrei, que instantaneamente derrubou-me no chão com uma agradável rasteira e algemou-me de imediato, jogando-me no camburão do carro.
Lá fora, Júlia gritava
- SEU ESCROTO, TODO MUNDO VAI SABER, SEU ARROMBADO DE MERDA, COVARDEZINHO DESGRAÇADO. EU TE ODEIO, SEU PORRA, TOMA NO CU, VAI SE FODER, EU TE ODEIO, SEU MERDINHA.
Meu maxilar pulsava e em algum lugar do meu rosto algo ardia, eu sentia cheiro de sangue, mas nem era isso o que de fato me incomodava.
Se até mesmo o velho e bom Cash tinha uma passagem pela polícia, então eu não importaria de passar um tempo na minha própria, particular e tão paraense Folsom Prison.
O que me incomodava mesmo era o vaso de pétalas vermelhas que até seriam pétalas de cerejeira se fossem pétalas rosas ao invés de pétalas vermelhas na porcelana branca envolta por cidreiras coloridas em alto relevo.
Três gerações para terminar daquele jeito.
Que triste.



28 de julho de 2017

REGRA

REGRA

Estou tecendo poemas
agora
sem dominar coisa alguma sem
dominar regra alguma ensinada por
todos aqueles
Mestres
que me dizem para dominar
regras
requintes,
rasuras
robustas
de 
repetidos
rascunhos
rabiscados
nas
ranhuras
ribaltas
do teu
rosto que
é a única, a única e
única regra e 
requinte que
ouso seguir

mas não
dominar.


(Felipe Santiago)




27 de julho de 2017

A melhor prosa de amor que posso escrever no momento



Você já lambeu um cu?
Lamber cus são pequenas, secretas e vergonhosas provas de amor – quando, à parte, não configura um fetiche. Eu lambi o cu dela e sempre soube que era amor. Ela me disse depois que aquilo fazia cócegas, imagino que deva fazer. Lamber cus é prova de amor, havia em mim essa sabedoria particular e ancestral cravada no espírito, um inconsciente coletivo próprio, quase instintivo. Então li um poema de Bukowski: O melhor poema de amor que posso escrever no momento. Fico feliz que, sem querer, trilhe eu o mesmo caminho lógico de existência e de amor que trilhou o velho safado. O poema de amor fala sobre amor e sobre como é amor quando você lambe o cu da mulher que ama:


“ela quer que eu escreva um poema de amor
mas acho que se as pessoas
não conseguem amar os cus
umas das outras

e peidos e as merdas e as partes terríveis
assim como amam
as partes boas, isso não é o amor completo”.


Bem, eu lambi o cu dela. Eu amei o cu dela, beijei e movi a língua – de cima para baixo, de baixo para cima, esquerda-direita, direita-esquerda e um pouco de cosquinhas. Lambi o cu dela e amei o cu dela, embora todos ainda duvidem que verdadeiramente amei. Porém poucos lamberiam o cu dela, exércitos inteiros de homens de mentira que enojam-se mesmo com o aroma de bocetas jamais pousariam suas línguas em cus, pois lamber cus, quando não no caso de estranhos fetiches, configura a mais indubitável prova de amor, prova do meu amor.
Lambi o cu dela e falei
 ei, agora quando você me deixar no final e me odiar por aí, vai dizer AQUELE IDIOTA LAMBEU ATÉ MEU CU eu vou ficar conhecido como lambe cu
e ela dizia:
 para! Eu não vou fazer isso e
eu verdadeiramente não sei se ela faz, mas a parte de me odiar e de me deixar concretizou-se. Eu não duvidaria se um dia alguém na rua me chamasse de lambe cu. Aí eu saberia. Aí todos saberiam que eu a amei de verdade mesmo naqueles tempos de guerra e de falsa trégua. Eu a amei de corpo e alma, por dentro e por fora: da boca ao reto, da ponta dos cabelos até os dedões dos pés. Amei-a por completo: nos peidos à noite, nos cravos espremidos ou quando ela esquecia de dar a descarga.
Amei-a com aquele cu a ser lambido.
Lamber cus é uma prova de amor. Indubitavelmente – eu já disse isso, certo?
Se até o velho Buk escreveu, então é verdade.
Espero que ela esteja zombando disso por aí
espero que ela esteja zombando da minha cara e
da minha submissão
ou
talvez não, porque às vezes, só às vezes, ser amado ou ser amada por alguém pode ser vergonhoso.
Como lamber cus.
lamber cus não deveria ser vergonhoso,
lamber cus há de ser prova irrefutável de
amor,
cus deveriam ser louvados.




19 de julho de 2017

Deslizar




Desliza em mim, ó, musa da noite,
teus finos dedos de unhas raladas, pontas amarelas de teus minutos de devaneios.
Desliza em mim, ó, musa da noite,
 tuas mãos macias, pequeninas de embustes passados que te ralaram nós, dentes e traumas.
Desliza em mim, ó, musa da noite,
 tua palma por meus membros rijos, como na quinta fizeste e no sábado me acolheste, este calor das fibras ardentes, este tremor palpitante do subir e do descer, dos teus olhos negros e fundos de olheiras, esta pequena veia que te desce a pálpebra quando teu corpo nu se despe para mim, magro, doentio, fedendo a álcool barato.
Desliza em mim, ó, musa da noite,
 tua pele bruta de minúsculo corpo no meu pequeno corpo, faz dos teus braços as cordas que me amarram hoje a esta terra e me fincam nessas mangueiras, a única existência viva a fazer-me não ir embora daqui, pois se daqui eu fosse, não veria teus sumiços e não piscaria ante teus retornos de sorrisos amarelados e hálito mentolado. Pois se daqui eu fosse, não veria este batom contornando a boca que não esqueci de beijos que me viciaram a cabeça e me destruíram a razão, ó, Heroína das minhas noites e dona dos meus prantos.
Desliza em mim, ó, musa da noite, teus marrons cabelos quase louros na cara, soltos enquanto entre as pernas úmidas deslizas por meus membros rijos de amor, ah, de amor, o amor que ousaste infringir em mim mais uma vez enquanto de feridas antigas eu tentava me curar.
Desliza em mim, ó, musa da noite, essa língua verde do vil veneno a oxidar minhas veias, enferrujando em mim o ferro torpe que tatua teu breve nome embaixo da pele minha, onde homem ou mulher alguma poderão ver, mas só sentir quando tocam-me o corpo e quando desvendam minha mente – porque só tu, só tu, ó, musa da noite, permeia hoje este corpo e esta pútrida alma como outrora outra musa o fez tão intensamente, tão insanamente a cegar-me a consciência e dilacerar-me a vida, os sonhos e os vícios.
Desliza, ó, musa da noite, tu’alma,
desliza teu sopro,
desliza teu quadril no meu e repete, diz que me ama duas, três e cinco vezes: eu te amo, eu te amo, eu
te
 amo e te amo e  enfia tua unha na epiderme minha a delirar e arranha, agatanha, deixa-me tu o teu torpe toque tão talhado de tortura, tesão, tortuosa tara de tua tensão. Desliza em mim teu hálito, desliza em mim tua saliva, ó musa da noite, e me interna no manicômio mais voraz pra desintoxicar-me do que deixaste e de como vieste sem aviso, sem alertas, sem advertência de como tão impiedosamente te esquecer desde que partiste para provar as pernas de outras mulheres e os membros rijos de outros tão belos rapazes que tão logo, tão cedo, ó, pobres coitados, perdidamente sem consciência, razão ou controle ficarão e tão sistematicamente também te dirão enquanto repetem, dizendo que te amam duas, três e cinco vezes: eu te amo, eu te amo eu
te
amo e te amo enquanto partes para outra aventura e a outros corpos deslizar, como deslizaste no meu e aqui me entorpeceu com esse perfume que todo santo dia na hora santa sacramentada por Lúcifer em carne, faz-me pronunciar e gritar no escuro do meu quarto, regado a quinze cigarros e a litros de álcool banhar-me, porque
tu destróis o meu cais,
ó, musa da noite,
com a porra do teu cheiro viciante e
com a porra do teu deslizar tão imperdoável de
pernas, palavras e proezas
ao sussurrar-me
ao afirmar-me
tão enganosamente
ou
tão imaturamente
repetindo-me duas, três e cinco vezes: eu te amo, eu te amo eu
te
amo.
Faz silêncio, ó musa da noite,
Porque só eu sei que é
mentira.





17 de julho de 2017

As coisas belas não me pertenceram



Cabelos castanhos
nunca me pertenceram. 
Sorrisos de verão
também não.
O que me pertenceu do verão foram as canções, somente elas. Em dias sombrios, eu gosto de ouvir Neil Diamond cantar que era primavera e a primavera tornou-se verão. Você pode alcançar o mundo com algumas boas músicas, você pode possuir o mundo inteiro com algumas belas letras e pode conquistar sonhos com determinadas poesias.
Desejo,
desejo foi a única coisa que me pertenceu,
o desejo por aqueles cabelos castanhos que ao longo dos anos foram tingidos de diversas cores – um dia, até mesmo aventuraram-se pelo vermelho.
Eu sou fraco para essas coisas, fraco demais – fraco para cabelos esvoaçantes, bagunçados; fraco para cabelos recém-arrumados em um rabo de cavalo após uma noite inteira de sono, fraco para cabelos molhados, bagunçados de novo, despenteados. Fraco para cabelos castanhos. E eles nunca me pertenceram. Eu sou fraco também para unhas pintadas e batons vermelhos. Eu sou fraco para bocas de lábios macios e finos, aqueles discretos que o mundo não se sente necessariamente atraído, aqueles que nem todos ficam a imaginar a textura do beijo ou o movimentar dos afagos ou o calor, o gosto e a temperatura do hálito.
Se desejo foi tudo o que me pertenceu, eis aqui a prova. Por falta de posse não me refiro a desencontros, pois os encontros foram vários, devidamente aproveitados, guardados, escritos e reescritos, porém eles nunca de fato permaneceram:
atrelam-se a mim por meses apenas e então
o adeus.
Aí eu fico aqui, diante destas páginas em branco que logo são preenchidas sem propósito algum,
sem o conhecimento,                                    sem o reconhecimento,
sem a recordação,                            sem admiração.
Cabelos castanhos
eu gosto dos castanhos,
eu gostei repetidamente dos castanhos porque
foram repetidamente a minha sina,
minha pobre sina.
Eventualmente, num destes tão improváveis raiares de verão, destes encontrados em esquinas desconexas, em madrugadas perdidas de longas e intermináveis conversas, / outra vez por eles até aventurei-me em gêneros que há muito não desbravava; então dediquei-os poemas desconexos, sem arranjos elaborados, sem rimas requintadas ou parnasianismos exagerados, perdi-me nos perfumes que deles exalava e fiz disso meu centro secreto de arfar poético, fiz disso meu labirinto esguio e derradeiro, fiz da prosa verso de arte experimental, desenhei palíndromos perfeitos sugados por minhas narinas mais profanas,
torpes,
intensas,
levianas.
Eu fiz desses cabelos castanhos de novo a minha perdição,
meu exagerado conflito,
meu combustível arredio das causas mais banais
dos causos mais afáveis
das lágrimas viscerais
que caem dos olhos meus marejados,
cintilantes,
pulsantes de
amor
tesão
desejo e
agonias por cabelos castanhos, esse caminho maldito à minha sanidade
ruída,
adicta,
fragilizada.
Pois foram coincidências demais,
foram detalhes demais,
improbabilidades deveras improváveis
ocorrendo num desenrolar estranhamente cabalístico,
quiçá astrológico.
E de novo as canções, as canções de verão: mas agora não Neil Diamond, mas acho que
The Police ou
talvez The Smiths.
The Smiths,
sem dúvida alguma.
Porque cabelos castanhos fazem com que eu me sinta no auge da boa idade inocente novamente,
lançado às épocas
de ingenuidade,
bondade,
lançado às épocas de paz.
Porque cabelos castanhos são quase um ideal, um sonho de liberdade, o feliz lamaçal que Dufresne encontra ao sair de Shawshank.
Por isso outra vez e por isso de novo apenas
o desejo,
o vil desejo me pertenceu – ontem e hoje, distante a uma passagem de avião, distante a um curto sopro de lembranças.
Cabelos castanhos são a minha sina,
cabelos castanhos nunca me pertenceram
– assim tendem a ser as coisas belas.   





10 de julho de 2017

Igreja em ruínas



Eu peregrinei por estas peles tão devotamente por dias e noites, Luas inteiras a louvar Nomes pagãos. Eu fiz oração, eu ajoelhei e me embrenhei por matas selvagens, propositalmente descuidadas de atenção porque meus Deuses Egoístas não se importam com os pormenores dos ritos tanto quanto eu não me importava com os pormenores dos ritos. Havia fé demais encarnada nas necessidades e nos fervores dos gritos. Houve noites de sacrifícios, houve dias de penitência. Da fúria de meus Deuses Insanos eu bebi o rum mais cruel, o vinho profano. Abri lápides e reneguei passado, certezas e crenças antigas – admiti-me covarde para venerar meus Deuses Novos, admiti-me culpado, admiti-me leviano de suas vontades, de seus desígnios. Tão louco e perdido, ouvi suas vozes e seus chamados, fiz de meu corpo instrumento para adorar e do meu peito altar para entoações de vis melodias. Pelas matas selvagens eu dediquei meu sangue, meu nome e minha vida; pelas matas selvagens esfreguei meu rosto, passeei a língua, fiz de seu gosto bússola, aroma devoto, único e supremo. Inviolável. No entanto fui eu batizado: moído, sacramentado, sujo, sacrificado. Fui torpe e cego, xiita eufórico das causas mais banais, odiei homens, mulheres e cuspi naqueles menores que eu, fosse em vida, fosse em brilho. De homens animalescos com selvageria tirei sangue, gritei e tremi, bebi da mais pura adrenalina para defender meus Deuses, meus Deuses Egoístas, intensos, cheios de si, cheios da verdade e cheios da certeza, da Palavra certa e nunca não-dita, da Palavra nunca incontestável, da palavra nociva nunca torta, nunca equivocada.  Caminhei eu em solos cinzentos, entre mortos-vivos que fui condenado a lembrar, pelos quais fui obrigado a esfolar e a esfolar-me. Beijei meus Deuses Egoístas, suguei-lhes os lábios, a boca e fiz de sua língua minha hóstia fervorosa, comunguei com suas curvas, comunguei com seu sangue mensal e de seu perfume fiz meu ópio. Comunguei corpo, alma e suor, comunguei a alma que eu nunca tivera e perdi a bondade nata do vão ateu que era. Venerei os pés de meus Deuses Egoístas, neguei minha imagem, neguei minha bondade, neguei minh’alma e neguei minha opinião, fechei a boca para gritar canções que já não eram minhas, para recitar preces que eu não acreditava com o peito que já não a mim pertenciam. Eu amei Deuses Egoístas que nunca me escutaram, que nunca responderam ou que nunca foram gratos, eu amei Deuses Egoístas com minha fé indomável e odiei Deuses Egoístas por não responderem e entregarem a mim a sina de velhos cegos como Tirésias e penitentes como Édipo caído. Eu amei Deuses Egoístas like a miner loves gold and this will never grow old, um dia julguei por verdade absoluta. Eu venerei Deuses Egoístas que me responderam tanto quanto responderam a fétidos ateus de más intenções, banhados em drogas diabólicas das narinas e mentes opulentas. Eu entreguei a prata, fiz-me diamante, usei nos ritos o fogo e neles bebi o mel. Eu matei por Deuses Egoístas que tocaram-me a pele, balbuciaram-me nos ouvidos palavras de fel e masturbaram-me de luxo com promessas vãs de eternidade.
Eu venerei Deuses Mentirosos,
Amei meus Deuses Egoístas,
Danosos,
e agora
faço preces malditas
loucas, assassinas
de minha fé destruída.


2 de julho de 2017

Não é problema nosso



Tem feito um calor de fritar o cérebro ultimamente.
Especialistas disseram outro dia no jornal que por mais que as metas de emissão de CO² sejam reduzidas em 2%, este planeta continuará apocalipticamente quente pelos próximos 100 anos. É tempo demais, que sorte a minha não durar tudo isso e provavelmente dar um tchauzinho bem antes. Quando vi a notícia na tua televisão, você estava ao meu lado tirando as cutículas do dedão do pé, na verdade nem pareceu se importar muito e foi aí que eu vi que isso não poderia ser tão sério assim, caso eu assumisse uma postura tão egoísta e anti-ambiental. Isso automaticamente me fez pensar no episódio de Futurama, quando o lixo do século 21 jogado no espaço está voltando à Terra no século 22 com um grave poder de ameaça. Como solução, a humanidade joga o lixo do século atual contra o lixo do século passado e no final uma pergunta é feita:
- e se esse lixo voltar daqui a 100 anos? – alguém questiona.
- não é problema nosso. – Fry responde.
Não é problema nosso.
Nem é problema seu.
O problema seu, neste século e neste instante, é a cutícula do dedão do pé. Eu te contei uma vez que acho pés femininos bonitos, os bons pés pelo menos. Não é um fetiche sexual, que fique claro, pelo menos não ainda, assim espero. Eu troco de canal. Ultimamente os canais de documentários exibem apenas programas sobre pechinchar velharias e leões em savanas – “A Leoa”, “A Grande Leoa”, “Leoas”, “O território dos felinos”, “Savanas”, “O Leão”, “O Grande Leão”, “Leão”, “O Rei da Savana” etc.
Nada contra leões, nada contra você, nada contra sua configuração astral, inclusive.
Troco de canal. Antigamente (e isso até pouquíssimos meses atrás), você adorava e gargalhava assistindo Apenas um Show. Apenas não sei o que aconteceu agora. Você continua com essa cutícula interminável. Diminuo o volume e trocou de posição na sua cama, ela é imensa e logicamente não ocupo tanto espaço. Viro de ponta cabeça, me enrosco entre os panos, deito a cabeça ao lado do teu pé, pra ver se me nota.
- o que que tá rolando? – eu pergunto e
claramente você não responde, me exprime um sorrisinho triste com aquela tristeza envergonhada nos olhos que eu já vi três vezes antes na vida. Três vezes antes já é demais para que eu não precise repetir a pergunta, pois já sei a resposta.
- a unha tá bonita, eu beijaria suas unhas se isso não fosse nojento.
Você deveria sorrir agora, mas só arqueia as sobrancelhas e diz com tom discretamente lamentável:
- credo, tão submisso.
É verdade,
eu respondo mentalmente.
Acho que deveria parar.
Três vezes antes e eu ainda não aprendi, não tanto como aprendi sobre esses olhares envergonhados que não querem exatamente dizer o que sentem.
- São só unhas, deixa disso. – dou uma piscadela para disfarçar qualquer reação imediata que tenha brotado no meu rosto, mas que sorte você não ter olhado.
Cruzo os dedos por trás da cabeça e observo o teto do teu quarto, mas não antes de bisbilhotar teu rosto. O cabelo chanel sumiu junto com os olhares de leveza, eles agora estão maiores depois do dia que você acordou estranha, olho-se no espelho e disse:
- cansei desse cabelo, vou deixar crescer e
simplesmente deixou
crescer.
Tem deixado.
Além de unhas e pés femininos, eu sou admirado e submisso por cabelos femininos.
Admirado e submisso pelos teus cabelos também,
mas eles estão crescendo
 e eu não posso fazer nada agora.