27 de maio de 2017

Assim disse o cowboy



Tem sido mais recorrente: a priori angustiador, mas paradoxalmente apaziguador ao fim da madrugada.
O sol raia lá fora e finalmente meus olhos pesam, eu durmo porque não resta mais nada a ser feito – as páginas estão preenchidas: duas, três, quatro, cinco e um conto à parte. Contos inúteis que, percebo, um dia em uma tarde ensolarada quando todos os futuros anos tiveram corrido, talvez eu até jogue pela janela. Vai saber? A madrugada passou como tantas outras e como cada uma tem sido. A princípio a angústia, você se sente como Caetano com aquelas perninhas cruzadas e o violão no colo; você se torna Peninha no instante de composição de Sozinho. Então tudo vem à tona. “Essa música me lembra alguém”, você nota; sorrisinho de delicados lábios e cabelos castanhos. Ela deixou uma boa lembrança.
Porém estas palavras não são sobre mulher alguma; estas palavras não são sobre partidas, dores ou amores.
Estas palavras são sobre resignação.
E planos.
Então abro o que quer que esteja ao meu alcance: cerveja, vinho, catuaba ou whisky. Acendo um cigarro. Já é Maio e tem chovido temporais nesta cidade e as noites estão frias, agora gélidas como cantou Djavan. Abro um livro. Leio duas páginas, canso-me e volto a escrever coisas que já questiono o caráter, acho que estou verdadeiramente perdendo o swing ou talvez o talento, muito provavelmente o propósito. O que brota nestas páginas que redijo não é nada pessoal, não é nada vingativo, não é nada apelativo, dramático ou irônico – nem mesmo as palavras de escárnio têm sido frequentes, pois já não há muito o que maldizer, já não possui tanta graça, pois no fim da jornada estarei sempre perdendo a batalha. Sarcasmo já não é uma arma eficaz, embora eu e alguns bons companheiros de batalha continuemos nos divertindo das piadas. Nossos inimigos estão lá fora, gargalhando e vencendo a guerra (“a história é contada pelos vitoriosos”, alguém disse), portanto não há muito o que se ironizar ultimamente.
Cada madrugada diante deste teclado e da recente typewriter adquirida com orgulho em três parcelas na camaradagem já pouco possuem algum valor. Eu vejo inúmeras pessoas lendo o que é escrito, mas não é como se houvesse qualquer fervor por trás disso, não é como se houvesse qualquer resposta ou feedback, como tão moderno e descolado soa na boca dos jovens, velhos e todos desta geração.
Os bons termos e tempos estão ficando para trás.
Analogismo é lembrança.
Ser analógico virou piada.
E este dom é inútil. Antigos nomes sutilmente me disseram isso. Antigos nomes estavam corretos. Antigos nomes tornaram-se vitoriosos. Já eu permaneço aqui, iniciando noites com álcool e Caetano alguns arranjos, alguns parágrafos, alguns tragos, lágrimas vez ou outra, mas sempre, sempre, derradeiramente, terminando com um sorriso na eterna montanha russa escatológica de sentimentos. Tem noites que é preciso colocar alguns sentimentos mal digeridos para fora, você o faz, faz com sinceridade e sente-se aliviado. É a parte “paradoxalmente apaziguadora” à qual me referi na primeira linha. Todo sentimento tísico vomitado é seguido, necessariamente, de uma sensação relaxante de futuro bom e incerto. Nesse panorama estranho, a escrita tem ficado para trás, frequente, sim, mas totalitariamente solitária, sem recompensas felizes, físicas ou financeiras. Foi em uma noite assim que brotou o plano, o tão famigerado plano que um dia foi proferido com lástima e dor, mas hoje surge de forma resignada, conformada e necessária. As escolhas que estão por vir fazem-se necessárias e as decisões, derradeiras. Ciclos precisam ser fechados e alcunhas apagadas, definitivamente. Acho que antigos nomes estavam corretos: isso não é um dom, é inutilidade. Futilidade. A pior parte nisso tudo é que o pensamento não me assombra, nem tampouco me aflige, não como antes; pois é preciso dar o braço a torcer, respirar fundo e aceitar certas coisas como são.
Estas palavras são sobre resignação”, sonhadores fracassados devem ter escrito por aí em algum lugar no tempo e nas ruínas.
Whatever happens, happens,
disse o cowboy.




23 de maio de 2017

Você precisa saber que eu sou um Subway de 15cm




Resignação é uma de minhas palavras favoritas, não pelo significado, mas pela sonoridade e pela aparência. Não há muita lógica por trás disso, é apenas umas das palavras que mais gosto de pronunciar.
Resignação.                                                                                                                                                                                                    Resignado.
Aliás, estou resignado. Você está indo embora e estou de mãos atadas, porque não há muito que eu possa fazer ou dizer para fazê-la ficar. Você é impetuosa demais para isso e possui atrás de si uma ideologia forte, digna e justificável onde eu, por ser ontologicamente o vilão, não posso convencê-la do contrário ou mostrar as coisas como no fundo são. Ontologicamente, qualquer coisa que eu diga será, necessariamente, mentira, dissimulação ou vil estratégia. Daí, mantenho-me resignado.
Você aponta um dedo na minha cara e eu não ligo para isso, isso não me ofende. Um dedo na minha cara não é agressão, mas que fique clara a extrema relatividade deste fato. Um dedo na minha cara não é agressão porque coisas piores já foram apontadas para cá e porque talvez eu sempre tenha amado o traço das suas mãos e o formato alongado dos seus dedos. Uma vez você até quis enfiar esse indicador onde os tratados territoriais da Sociedade Protetora dos Animais não permitem para um homem.  Na ocasião, compenetrado, eu até cogitei permitir, mas seus dedos são gigantescos e seria doloroso demais, não tanto para minha moral distorcida, para minha consciência sempre aos frangalhos ou para essa coisa viril e patética que os bons rapazes julgam tão santificada, mas para meu físico ainda intacto. Você dizia até mesmo me admirar por isso, pois sabia que eu não era como aqueles milhares de caras que antes tanto imploraram pelas suas fronteiras de baixo, mas ofendiam-se quando você sugeria a viagem nas fronteiras deles. Certa vez, sorriu-me com aqueles dentinhos bonitos, dizendo que me amava pelos estranhos sacrifícios que eu era capaz de fazer – abrir fronteiras, negar qualquer tipo de estereótipo padronizado ou admirá-la por uma noite inteira no meio daquele vestido que sua excelentíssima família condenara. Bem, fronteiras abaixo mantidas intactas, você apenas brincava e eu no fundo mantinha em aberto; naqueles dias, você fazia muito por mim e eu faria algumas tantas coisas por você.
Sem pesos retrógrados na consciência.
Merda.
Agora, no entanto, você me aponta esse dedo indicador de dar inveja ao doutor que Michael Kyle teve de enfrentar. Não importa os lençóis que tenhamos dividido, os cigarros que tenhamos compartilhado ou as vezes que sussurramos um ao outro as clichês-três-palavras após todos aqueles lençóis melados; não importava o tamanho das playlists que juntos dividimos ou a imensidão de filmes debatidos; não importava o quanto em tão pouco tempo conheceu-me melhor do que minha própria mãe; não importavam as ideologias que tínhamos em comum, não importavam as crenças descrentes e as cosmologias admiradas. Você ainda apontava aquele dedo na minha direção.
Balancei a cabeça, assentindo.
Exigiu-me você qualquer resposta.
Mas você agora estava partindo, apontando o gigantesco indicador na minha cara por finalmente descobrir os demônios que plantei por aí. E aí eu disse eu sou um Subway de 15cm. E você perguntou que porra é essa? Tá de brincadeira de novo? E eu disse claro que não, a lógica toda é que eu sou um sanduíche da Subway, só que de 15cm. Você riu. Riu de nervosa. Acho que no fundo a única a razão para ainda estar sentada ali, diante de mim, é que aguardava algum tipo de explicação ou, no mínimo, um sentido e coerência. Aí eu continuei, explicando que sabe, sou um Subway de 15cm e você perguntou por que essa merda?, eu respondi que sou assim porque sou montado. Apontei para o sanduíche mordido e melecado em minhas mãos e o ergui diante de nossos olhos, explicando com calma que veja bem, eu sou em essência um Steak Churrasco, e na metáfora da explicação, ser um Steak Churrasco significa a natureza dos meus atos. Eu fiz o que fiz e o que te disseram de mim é verdade. Quer dizer, o que te disseram que eu fiz é verdade. Mas eu sou montado, entende? E você só fez um bem audível e desconfiado Hummmm?, porque era tão retardada quanto eu e em alguma escala astrológica conseguia acompanhar meus estranhos raciocínios. Então eu continuei, falando que os atos que dizem que cometi foram reais, na verdade esses atos são a espinha dorsal da história e da verdade, mas aí vem todos os acréscimos na história, versões e detalhes que não foram verdadeiros, mas que se acrescentados ao sanduíche, fazem a sutil e dramática diferença capaz de mudar o sabor e o paladar por completo, certo? E você disse certo. Você disse certo e eu, dentro de mim, esperançoso e emocionado por você pelo menos me dar ouvidos (coisa que poucos haviam feito). 
                Certo, eu suspirei aliviado, acrescentaram algumas coisas em mim. Acrescentaram cebola demais e disseram que eu tinha esse gostinho forte e também acrescentaram pimentão, muito pimentão. Colocaram azeitona e encheram de molho Chipotle. Se eu pudesse fazer tudo aquilo que disseram, pensa só, eu reagiria feito o Cassidy diante do Jesse Custer: “imagine as possibilidades”. Você sorriu nesse momento, embora não tenha matado a referência. Esse foi outro nível de alívio alcançado. Continuei, falando que a questão é que eu fiz o que fiz e nunca negaria, mas eu sou um Subway montado com um sabor devidamente montado. Montaram-me tanto que eu não posso desfazer a montagem, pois a versão final ficou famosa e o gosto, agradável na boca dos outros. Acho que por isso eu virei promoção e tantos vêm aqui me devorar, colocando-me em suas bocas com um prazer vil e vingativo. E essa, te expliquei enquanto dedilhava o sanduiche na minha mão, porém com olhar sério, é a versão que todos por aí têm espalhado até hoje.
Então eu paro de falar. Dou uma mordida no sanduíche e você julga minha atitude por provocação, mal sabendo que eu realmente só estou com fome e com um coração aos martelos, porque sei que você se levantará e partirá daquela lanchonete e da minha vida, saboreando o estranho e vilanesco sabor do meu Subway em sua boca como todos nesta cidade aparentemente adoram fazer. Mas você fica por um instante, digerindo minhas palavras. Tu achas isso uma grande piada, né?, você pergunta e eu respondo claro que não, isso tem fodido a minha vida. A diferença é que essa explicação do Subway eu havia originalmente criado como piada, mas utilizava agora como explicação didática. Eu espero que entenda, coisa linda, aí pego suas mãos e dou um beijo nesses dedos longos que um dia ameaçaram me enrabar, antes fossem literalmente eles do que metaforicamente esta cidade.
Ela sorriu e ficou em silêncio pelo resto da noite, mesmo depois que saímos da Subway.
Três dias após aquela noite, depois de um interminável silêncio e indiferença que eu já havia tomado por término e adeus, você me enviou uma mensagem, dizendo que só teve uma coisa que eu não entendi. Perguntei o quê? E você por que um Subway de 15cm e não um de 30cm? Eu comecei a rir e você se emputeceu. Aparentemente, a pergunta era séria.
No dia seguinte, estava você em meus braços.
O que você precisa saber, comecei a explicar, é que o steak churrasco, pelo menos ontologicamente, é verdadeiro. Já os motivos e os detalhes que fazem toda a diferença no sabor final, não. Ao contrário do que dizem por aí, eu brinquei, olhando para o teto com olhar profunda e dramaticamente reflexivo, eu não sou tão gigantesco ou monstruoso como um Subway de 30cm. Eu sou um pequeno, singelo, simples e fofo Subway de 15cm. Mas saiba que se colocarem Chipotle demais, cebola demais, pimentão demais e uma só azeitona, o bagulho fica sinistro.
E pisquei.
15cm? Cadê a sua honra masculina? você perguntou e eu dei de ombros, mostrando os dentes como se fossem dentinhos bonitos iguais aos seus. Eu te conheço um pouquinho o suficiente pra saber disso, amorzinho, você falou devagar ao me analisar com aqueles olhos de piscinas oceânicas profundamente negras. Muito bem, respondi aliviado. Então vamo encher o bucho, completei, pegando o celular e feliz por descobrir que, dependendo do bairro onde hoje você mora nesta cidade mangueirense, o delivery da Subway agora é aceito.
Steak churrasco?, perguntei meio provocativo.
Você fecha a cara. Eu tenho medo de Leões brabos.
Com azeitona?, insisto.
Você continua com essa cara fechada.
E me responde que eu odeio azeitonas, esqueceu?
Eu também odeio e isso é péssimo sinal, né?, persisto.
Você sorri e mata a referência.
Merda, eu digo.
Por um segundo dá de ombros com deboche dizendo que ou talvez eu esteja mentindo.
Eu digo tomara e mando um beijinho em sua direção.  
Você me mostra o dedo do meio que é maior que o indicador e agradeço por sua vontade de enfiar essa coisa no meu rabo ter passado.
Eu quero frango com requeijão, você diz, mexendo no cabelinho
e completa: 30cm, por favor.


11 de maio de 2017

Jordana que não é Jordana que talvez nem seja Maria



Ela cobre as costas com o lençol, como se sentisse vergonha do próprio corpo despido diante de mim. Eu não sabia quanto tempo duraríamos, talvez as primeiras semanas, talvez os primeiros anos ou nem sequer as próximas horas, mas eu beberia por uma eternidade daquela suave sensação de compartilhar com alguém o suor e a respiração levemente ofegante, já recuperada, em meio à madrugada. Estava deitada de costas, o rosto apoiado pelas mãos, parcialmente em cima de mim. Daquela posição, eu podia sentir seu rosto direcionado ao meu, olhando-me com certo interesse enquanto eu fitava o teto com uma expressão talvez compenetrada, mas que no fundo não passava de boba euforia e alegre reflexão.
Ela ajeitou o cabelo negro e bagunçado.
Retomou o assunto que havíamos começado antes de interrompermos para obrigações mais urgentes:
- Tu me explicaste uma vez que odiava quando te pediam pra escreveres um texto pra elas.
- Ah, foi. Vai me pedir que eu faça isso?
- Tu já fizeste.
- Ih, é verdade. Perdeu otária.
Ela esboçou uma risadinha e mordeu meu ombro. Em resposta, circundei com o indicador as manchinhas em seu ombro que imediatamente a fez entender a referência, mostrando-me aqueles brilhantes dentes pequenininhos.  
- Algumas meninas me pediam isso antigamente, mas todo mundo tinha dezessete anos nessa época.
- Quem desenha também tem esse grilo. – Deu de ombros, numa clara tentativa de justificar meu ato. – Porque todo mundo pede pra ser desenhado, já reparou?
- É um saco.
- Eu me mataria se as pessoas pedissem todo dia que eu fizesse uma planta pra casinha dos sonhos delas.
- Finalmente alguém que entende o que digo.
- É, eu entendo, mas... – E aí esgueirou-se um pouco mais sobre mim, num tom de voz oportunista. – E aí, me diz, nessa atual conjuntura da tua vida, posso ser a Maria?
- Não dá pra esquecer isso?
Eu não devia jamais ter contado sobre House of Wolves. Ela não devia jamais ter perguntado sobre. Cocei a cabeça com uma careta e ela continuou, imitando minha frase:
- Perdeu, otário.      
- Belessa. Uma vez me perguntaram se eram a Maria. – Mordi o lábio, zombeteiro.
- E aí, o que tu fizeste?
- Eu enrolei.
- Que canalha!
- Aí perguntaram “eu sou a Lúcia, né?”.
- E aí?
- Deixei em aberto.
- Que filho da puta, mano!
- Ou talvez tenha apenas mentido. Acho que menti, no fundo eu sabia a verdade.
Ela gargalhou. Estava à par demais daquela história e tapava a boca com as mãos, sempre com a humana e filosófica preocupação de não ser ou soar tão maldosa.
- Essa tua lua em capricórnio te demoniza.
- Verdade. – Desviei os olhos do teto para os olhos escuros dela, organizei com a ponta dos dedos os cabelos bagunçados, afastando a franja da testa e dando ali um beijo calminho e carinhoso. Aí balbuciei, sugestivo: – Mas a minha Vênus compensa tudo.
- É, bem fodido e apaixonadinho.
- Achei que fosse tudo a mesma coisa. – Sussurrei.
Ela sorriu e passou um braço em volta de mim, apertando como todo bom felino costuma fazer em dias chuvosos.
- Eu sei que no fundo desse coração meloso tem um canalha imprestável, mas o que eu quero saber é se eu sou a Maria.
- Atualmente?
- Não, que mané atualmente. – Mordiscou novamente meu ombro.
- Quer ser a Maria?
- Quero saber se você projeta em mim coisas da Maria.
- Por que tanto interesse na Maria? Que tal ser a Lúcia?
Ela gargalhou aquela gargalhada gostosa e me mostrou o dedo do meio. Em seguida, um beijinho. Sempre desfazia um ato violento ou ofensivo com um carinho imediato, maneira admiravelmente astuta de ser passiva-agressiva.
- Certo. Então digamos que a profecia se cumpra e você se torne a Maria...
- Uma projeção dela. – Corrigiu.
- Beleza. Então digamos que a profecia se cumpre e você se torne uma projeção da Maria. – Ela assentiu, atenta. Aproximei o corpo ao dela, como se ainda houvesse espaço a ser contemplado. As costas dela estavam completamente nuas, já não tão suadas, mas o leve contorno que lhe eram as nádegas ainda estavam escondidos sob o lençol. Passeei a os dedos pelas costas, subindo e descendo ao longo da coluna. – Acontece que talvez com a Maria as coisas não terminem bem.
- Ah, merda, eu sabia. Por isso essa relutância toda?
- Por isso essa relutância toda.
- Tu sabes que é só uma historinha, né?
- A vida andou imitando a “arte” muito bem, ultimamente.
- Acho que tu deverias escrever histórias menos tristes. Nem todo mundo vai te deixar ou te trair na vida, Felipe.
- É verdade, mas a felicidade não rende boas histórias. Dor, lágrimas, chifres e sofrimentos, sim.
- Ah, é?
- É.
- Frozen é legal.
- Up é melhor.
- Ruby Sparks, eles ficam juntinhos.
- Na verdade, é sugerido.
- Ficam juntos.
- Talvez.
- Cadê meu ultrarromântico favorito? O que fizeram com ele?
Fingi uma carranca.
- Tem aquele com o Bradley Cooper e o cara da Lolita.
- Sei qual é, mas esse filme é sacanagem, Fê.
- Sim, porque é triste e legal.  
- Hum...
- Dois...
Outra mordiscada no ombro, outro beijinho.  
- Você não precisa ser a projeção de porra alguma do que escrevo. Não preciso que seja projetada pra que eu escreva sobre ti.
- Lembra aquela frase em 500 dias com ela?
- Qual?
- Alguma coisa sobre mulher e literatura ou quando você escreve sobre...
- “Henry Miller disse que a melhor maneira de superar uma mulher é transformá-la em literatura”. Caralho, claro que lembro. Casa comigo, por favor!
- Mas é claro que eu caso.
Às vezes, ela me parecia uma típica francesa saída de um filme da década de noventa com aquele cabelo meio Chanel e a franjinha que vivia balançando sobre a testa. Havíamos assistido aos mesmos filmes nos últimos 24 anos e mais da metade das obras ou vídeos idiotas do youtube mencionados eram, imediatamente, aplacados por um “sim, eu conheço!” deveras eufórico.
Apertei-a entre meu corpo e puxei-a para mais perto.
- O problema é que eu não quero te superar, muito menos que tenha o mesmo destino que Maria. Quer dizer, a Maria tem um destino bom, o narrador, não. Não quero mais ser o narrador, não por enquanto. Não contigo.
- Não precisa ser.
- Perfeito.
Então passou uma das pernas delicadas e finas pela minha cintura e posicionou-se sobre mim, enquanto mergulhava o rosto entre meu pescoço. Notei que apesar da troca de posição, o lençol não saía ao redor da bunda. Ela prostrou-se e ergueu o tronco, de repente esquecendo da vergonha de mostrar-se despida diante de mim.
- Eu não sou uma garota de dezessete que pede que escrevas pra mim, mas o que preciso fazer pra que...
- Pra que...?
- Pra que escrevas sobre mim?
- Ahhh... – E fiz, não tanto pela revelação, mas sim pelo singelo movimento que fez com os quadris. – Vai ter que se esforçar. Eu sou difícil de convencer.
- Com essa vênus em Peixes? – Sorriu daquela forma meio canalha, inclinou-se pra empregar um beijo no meu pescoço outra vez, agora que descobrira o ponto fraco. Suspirou devagar, o hálito quente contra minha pele. – Eu duvido bastante.
- Eu já escrevi.
- Escreve mais. – Apoiou as mãos no meu peito.
- Vou pensar.
- Me dá um nome de mentira. – Afundou as unhas no meu peito.
- Tipo qual?
- Seja criativo, sr. Escritor-Intelectual. – Apertou as unhas no meu peito.
- Ah, vá se foder.
- Sozinha? Não, não. – Arranhou as unhas no meu peito.
- Sozinha não? – Olhei para aquelas longas e magras mãos de esmalte negro e descascado. O quão clichê seria lembrar que ela esteve mordendo o lábio inferior naquele instante? O quão clichê seria colocar, nestas linhas, que ela esteve mordendo o lábio inferior naquele instante? Foda-se. Ela mordia o lábio inferior naquele instante. – Então me chama.
- Já chamei, bestão.
Pensei em Minerva. Talvez Minerv... Mi... Milena.
Pensei em Vênus. Talvez Ven... Ver... Verônica.
Pensei na última boa música que escutara com nome de garota.
Pensei na noite em que nos conhecemos, a luz avermelhada do Café com Arte, sentados no banco sob a árvore. Contei que estava preso há meses nas páginas de Chuck Palahniuk, porque não conseguia e nem queria chegar ao fim de um dos livros que mais me reviravam do avesso e deixava meus nervos à flor da pele. Já ela, contou-me sobre a webcomic que andava lendo, “Jordana”. Havia nela Jordana e sua filha, Eva.
Eu poderia chama-la de Eva, mas já possuo uma Eva em meu catálogo de personagens.
Seria pedantismo demais.
Jordana era perfeito.
Perfeito do mesmo modo como ela encaixava o quadril sobre o meu e continuava a arranhar o meu peito. Pousei a mão esquerda na lateral da cintura dela, apertei por um instante, pensei em conduzi-la no movimento, mas ela sabe bem demais o que faz, então deixei que prosseguisse – permito que ela assim o faça por enquanto, pelo tempo que quiser. Era ela quem estava no comando.
Clichê verossímil ou não, ela continua mordendo o lábio, continua a me olhar com aquela fúria compassiva.
Maria alguma me olharia desse jeito, somente Jordanas têm esse olhar.
É, acho que escolhi um nome.
    


6 de maio de 2017

Suéter white stripes



A primeira vez que pisei em um aeroporto foi para te ver ir embora.
Você estava com aquele suéter vermelho de listras brancas e pretas que me fazia sempre pensar no clipe do White Stripes e daquela vez que escutamos seven nation army partilhando o fone de ouvido. Você foi a pessoa a quem eu mais vinculei músicas na vida, talvez (e o “talvez” encaixo aqui apenas por meros esteticismo e drama) porque tenha sido você o meu primeiro grande-amor-da-vida. Lembro que seus cabelos estavam úmidos, desembaraçados pelo vento dentro do táxi ou por descuido ao ter esquecido de penteá-lo. Alguns detalhes nunca nos escapam da cabeça. Eu até lembrava o modo como um dos fios caía sobre a sua testa quando veio me abraçar como se não esperasse que eu estivesse ali na última vez. Eu era jovem demais, mas tinha em mim a certeza de que o tempo nos massacraria para uma eternidade infindável que poderia durar uma semana, três meses ou um ano – já faz quase dez e, eu sei, não vai terminar ainda.
Eu sempre soube que no instante em que entrasse naquele avião, esta cidade já não mais seria a mesma, nem as minhas linhas, pobres linhas de intensas e desmedidas palavras que, sim, lapidaram-se com o tempo, mas perderam o fôlego e o propósito a cada sujeito descrente que me chamou de covarde por dedicar a você tanto entusiasmo e esperança. A cidade tornou-se exatamente isto: um aglomerado de ruas cheias de chuva e alagamento e mangas caindo em cabeças desligadas daqueles sonhos que desenhamos no calor dos nossos braços e no suor do seu pescoço em tardes de aulas matadas e horas escondidas de pais desconhecedores de nossas aventuras. A cidade tornou-se um vazio de pessoas aleatórias que me aplacaram vez ou outra, mas jamais sem os suspiros que tua voz mansa de olhar nebuloso me causou.
Eu te vi embarcar naquele avião sem pedir desculpas por ter ocultado todas as vezes que por ti senti ciúmes e que em ti pensava mais do que fiz questão de mostrar; eu te vi embarcar sem ao menos verbalizar o quanto realmente todos aqueles textos eram pra você e o quanto eu, pobre, tão pobre, era jovem e inexperiente demais para saber amar.
Te amei mais aqui dentro do que fora e isso foi um erro grotesco, mesmo para as crianças que éramos.
Você partiu para deixar esta cidade à margem de uma vida futura e insossa, sem a lista sonora de imensa extensão que a ti dediquei – a primeira delas, do Skid Row, onde estou caindo aos pedaços até hoje, quebrando, partindo, quebrando e partindo e quebrando de novo. Quando você partiu, naquela noite eu me afoguei em Táticas Vanilla Sky, sobretudo quando Ricotta canta “e essa cidade já não tem a menor graça quando você não tá por perto”. Eu não me afogava em álcool na época e nem acendia cigarros para queimar meus demônios, mas vinha você de um histórico inconsequente com drogas que, aos poucos, foi se distanciando quando conheceu a mim, aos meus olhos inchados e ao meu corpo – gosto de pensar que pelo menos uma vez na vida fui a salvação para alguém.
Daí em diante, foi ladeira abaixo.
Aquela ladeira chamada distância; aquela ladeira chamada, por consequência, de vida. Esperava eu que você relembrasse de nossos breves momentos de vidas tão jovens e ferrenhas que mais de fantasias foram feitas do que atos consumados de fato. Esperava eu que você relembrasse a primeira vez que fomos um só e que nossos corpos frágeis conheceram os segredos e as melhores maneiras de conduzirem-se, juntos, naquela dança entrecortada, suada e atrapalhada. Esperava eu que aquele voo não apagasse de nós dois as marcas na pele um do outro, embora agora gradativamente invisíveis e aptas a dar lugar a outras mãos, outros dedos e outras cicatrizes.
Como bem derradeiramente haverão de dar.
   


2 de maio de 2017

Camilla T. #02 - Impronunciáveis



Renasço hoje nesta vida talvez por vergonha, talvez por medo, talvez pela não saudade da época em que estivemos separadas. Eu sinto sua falta, sim, porém me assusta a possibilidade de perdê-la novamente, como foi naquelas obscuras semanas em que vaguei por aqui sozinha, sabendo que você abraçava o mundo com uma superação espantosa. É por isso que renasço aqui, pelo medo ou covardia do que estas palavras te causariam, pelo medo ou pela covardia de que sei que voltaria a me detestar – meu ofício, minhas provisões para essa vida tão cruel e massacrante. Renasço hoje nesta nova pele porque, mesmo tendo-a perto, ainda sinto medo pelas coisas que você me fez passar e por cada uma das outras tantas coisas que ainda me aterrorizam em você. Tenho medo também pela pessoa que diz ser hoje, pela mudança que disse que também está empenhada em cumprir, quando na verdade eu vejo em cada uma de nossas pequenas e minúsculas brigas o quanto você não mudou, o quanto você ainda está aí, toda cheia por suas infundadas razões, pela sua superioridade e seu alto poder de oratória, que sempre me vence e esmaga na minha tão boba e patética forma de argumentação. Você é mais forte que eu até quando não tem a razão, você é tão mais forte que eu que ainda assim consegue me vencer, fazer com que eu pareça a errada e consegue magnificamente me passar a responsabilidade por cada uma das minhas atitudes passadas ou presentes. Você ainda ignora o que fez, você ainda consegue dar razão para suas podridões, mesmo quando tudo o que eu tento fazer é buscar a iluminação correta com a confissão sincera dos meus pecados – que juro saber que não foram poucos e que juro saber que nem todos foram meus.
Você ainda me assusta com sua loucura esmagadora e capacidade nata de possuir a razão sobre tudo, Amélia. E o que me mais me consome, mesmo nos tempos de paz, é que eu sei o quanto isso um dia terminará novamente em sangue e guerra, exatamente como naquele mês de Abril, exatamente como um dia no futuro. É por isso que renasço aqui hoje, longe dos olhos do mundo, longe dos olhos conhecidos, porque quero gritar os meus assombros e os meus amores.
Quero gritar estas palavras impronunciáveis.



C. Tavares,
20 de Junho de 2015