21 de dezembro de 2016

As duas últimas primas (verdadeiramente) legais




Estou na fila das bebidas.
Eles todos estão pedindo drinks coloridos, misturas de álcool com coisas vermelhos e morango e iogurte e leite e frutinhas e uvas passas e azeitonas e vietcongs e mais coisas esquisitas com nomes bem elaborados e tropicais. De todos eles, eu só conheço a caipirinha. O cara atrás do balcão balança a cabeça e pergunta o que eu quero, o parceiro dele chega, dá uma sussurradinha no ouvido e eles pedem a minha identidade. Olho para os lados e vejo adolescentes de dezesseis anos bebendo livremente como se não houvesse amanhã e eu me pergunto Espera aí, eles são meus parentes? Eu nunca sequer os vi antes, eu quase poderia ser seu pai, mas estou aqui: confiscado pelos bem malhados e engomados fiscais de menores. Dou de ombros. Mostro a identidade. O cara, com aqueles braços imensos de baby-look apertadinho e tatuagem tribal e franjinha com gel caindo na testa me devolve o documento e pergunta de novo o que vou beber, inclino-me sobre o balcão e digo “que se foda”. Dou as costas e peço uma Coca-Cola Zero ao garçom. No meio do corredor topo com a minha avó, ela me diz as palavras de sempre, pergunta se eu já comi e se tem refrigerante pra mim. Ergo a mão, mostro a bebida e agradeço por não ter pedido a caipirinha, com certeza o mundinho de orgulho e amor dela por mim iria ruir, então que as coisas fossem como tivessem de ser.
Contorno a velha e volto ao meu lugar. Adolescentes de treze anos e dois metros de altura passam por mim – as garotas, parecem ter três. Sento na mesa, ao lado das duas únicas primas legais que conheço e que me restaram. Abro um sorriso na direção delas e tento pela décima terceira vez naquela noite puxar assunto, mas elas sutilmente me ignoram. Sutil e educadamente, é claro, elas são boas e discretas demais para aquilo. Então eu volto ao pensamento que me latejou a cabeça durante a noite inteira enquanto aqueles flashes de luz colorida piscam ao redor e um tio passa meio bêbado com um copo de whiskey ou um primo fanático por futebol bate no meu ombro e pergunta outra vez pelo time que há muito eu detesto porque há muito eu detesto futebol, mas eles não podem saber disso, porque ruiria todo o orgulho e amor que têm por mim. Queria uma dose de scotch, mas rolaria o mesmo problema com o orgulho e o amor e o falatório e toda aquela hipocrisia enquanto eles enchiam a cara com suas artérias cheias de gordura e preconceito e barrigas imensas e filhos fora do casamento. Apenas os bons, saudáveis e merecedores bebem scotch, Júnior. Pela décima quarta vez eu puxo assunto com minhas primas, faço outra brincadeirinha e novamente elas me ignoram – dão aquela risadinha discreta como se gostassem de mim, como se eu estivesse preso em um momento que passou, como se eu estivesse preso na infância enquanto brincávamos e enquanto eu dancei valsa com elas em seus quinze anos e enquanto elas ainda não viam em mim um escroto degenerado.
Mas agora os tempos mudaram e em meio a um gole longo e pesado de Coca-Cola Zero eu sei o porquê. Então tudo bem, então que tudo se foda. Se for pra ser assim, então que assim seja. Mantenha a reputação que agora te pertence: dou um longo suspiro e direciono o olhar às menininhas que nunca vi na vida e que não tenho certeza se de fato são minhas parentes. Há quanto tempo estive recluso de minha própria família? Foda-se. Eu olho. A primeira que passa por mim tem um rosto jovial, treze anos no máximo. Corpo de vinte. Olho a bundinha dela e sorrio. Diziam por aí que eu seria um professor molestador de menores, diziam por aí que eu era mais um naquele sádico saco de farinha fétido. Então tudo bem, então que eu o fosse. Que bundinha adorável. A segunda menina que passa tem duas bolas de basquete pitorescas no lugar dos peitos, quinze ou dezesseis no máximo. Já dá um belo caldo. Suspiro e prendo os meus olhos nos peitos dela com uma discrição tão fracassada quanto minhas tentativas de recuperar a relação com minhas duas últimas primas verdadeiramente legais. A garota das bolas de basquete passa, me encara, fica com vergonha e apressa os passos. Olho para trás e agora ela também olha para trás, então se reúne com as amigas e cochicha algo, visivelmente furiosa. Uma delas, dezessete no máximo, olha para mim com imensos olhos verdes e brilhantes, ela tem cabelos loiros e é uma belezinha, embora tão magricela e pequena e frágil quanto eu. Ela me olha dos pés à cabeça e abre uma gargalhada forçada, intencionalmente alta em meio ao pagodão que toca lá nos fundos do salão para que eu saiba que fala de mim, para que eu perceba que ela está usando de deboche como se eu não soubesse identificar um tão forçado e nada condizente.
Dou uma leve assentida e viro o pescoço.
Olho de volta para as primas. Tento pela décima quinta vez conversar sobre a situação política do país e o quanto isso vai afetar a educação e o meu rabo num futuro não tão distante assim e a loirinha aparece. Eu paro de falar. Estou assustado. Fodeu! Fodeu! Nunca provoque uma mulher histérica, principalmente se ela for uma mulher histérica de dezessete anos que acha que vai mudar o mundo. Certo. Comentário intencionalmente irônico. Exceto pela parte de mudar o mundo. Exceto pela parte de “nunca provoque uma mulher”, porque elas podem realmente foder com você, sua cabeça e sua reputação, principalmente a reputação – o ódio das minhas primas era uma consequência clara do quanto uma boa reputação estragada poderia por aí se espalhar e por aí convencer. Mas que se fodesse, certo? Reputação é tudo. Você precisa internalizar o que dizem a seu respeito, BoJack havia dito que “o sistema funciona”. A loirinha comenta algo para elas e as duas rebatem com um ou dois comentários discretos, que fazem a loirinha partir, porém sem antes me fuzilar com aqueles olhinhos verdes. Ela vai e eu olho para trás, vejo a bundinha magra balançando e mordo o lábio inferior, viro o pescoço e dou um gole na Coca-Cola.
- Mas acho que o Bolsonaro resolve, é a única solução que vai trazer decência a esse país indecente. – Digo com um ar despretensioso. Como se aquela merda não doesse na minha consciência. Mantenha o papel.
Mas que se fodesse, certo? Reputação é tudo.
Minhas primas sorriem, pedem licença e dizem que já voltam.
Pelo resto da noite, elas não voltam para a mesa.
Nunca voltaram.
Peço outros cinco copos de Coca-Cola ao garçom e puxo a camisa para fora da calça, enrolo as mangas acima dos cotovelos e desabotoo o botão que me espreme o pescoço. Respiro fundo. A essa altura, já estão todos dançando. Bêbados. Minhas duas últimas agradáveis primas já estão agora em outra mesa, com outros tios, outros primos e sendo discretamente educadas com gente que vale a pena. As meninas que eu não tenho muita certeza se são minhas parentes continuam passando e sinto seus olhares fulminantes sobre meus ombros, mas já não estou olhando, já fiz a minha parte: mantive minha reputação intacta. Outro gole na Coca. Queria mesmo era um Johnnie, mas apenas os bons tios e primos com artérias cheias de gordura e preconceito e barrigas imensas e filhos fora do casamento podiam beber, porque “isso daqui não é pra ti, você é o doentinho superprotegido da família, beba seu refrigerante”.
Então beleza.
Que se fodesse.
Volto à fila dos drinks que agora não está tão cheia assim. O cara atrás do balcão, com o braço que é três vezes o meu tamanho, o cabelo com franjinha caindo na testa, a tatuagem tribal e o nariz empinado me pede, com escárnio, outra vez a identidade. Dou de ombros. Entrego a ele de novo. Vai querer o quê?, ele pergunta. Um desses aí de morango, aponto com o dedo, mas sem álcool, por favor.
Ele faz sua dança gigolô com as mãos ao preparar a batida como se eu fosse uma de suas clientes adolescentes e alcoólatras de quatorze anos, mas tudo bem, aqueles caras estavam liberados pela santíssima permissão das meninas, eles sim podiam olhar com prazer e pedir números e saírem isentos ao fim da noite – tudo porque não haviam conhecido garotas histéricas para profanar seus nomes, nem primas verdadeiramente legais para perder a fé neless ou colegas de família para julgá-los ou amigos ou conhecidos ou quem quer que fosse para odiá-los. Cruzo os braços. Mentalmente, estou repetindo um mantra: Jengou Yange Rongo Jun. Significa “vai se foder, bartender bombadinho” em dialeto tibetano.  
Volto ao meu lugar. Dou uma sorvida na bebidinha de morango sem álcool.
Isso, meninas, isso sim é bebida de macho.
Dos escrotos.



9 de dezembro de 2016

É feriado lá fora



Você levanta da cama em uma tentativa autoritária de cumprir com o que planeja. Prende os cabelos lisos em um coque improvisado e joga o lençol para o lado, obrigando o corpo a assumir uma disposição que é quase impossível para o horário, obrigando o corpo a assumir uma disposição que os olhos não desejam. Põe uma das pernas para fora e penso ver sua reação quando toca a ponta do dedão na lajota fria, porque recolhe um pé em um reflexo rápido e contido, quase tentando esconder de mim o quão despreparado seu corpo está. Eu começo a rir e você, no fundo da alma, realmente tenta vestir uma carranca que não funciona às sete horas da manhã. A luz entra amena pelo balancinho e pelas frestas da janela de metal, juntamente com o clima meio frio da quarta-feira. Pelo pouco que me recordo da madrugada, garoou por volta das três e meia, o que é raro para essa época do ano. Talvez eu lembre disso porque olhei a hora no celular antes de virar e pegar no sono com o peito ofegante ou talvez fosse uma ilusão bordada em um sonho delirante qualquer.
Novamente você tenta: coloca a planta do pé cautelosamente sobre a lajota, experimenta o frio da manhã na planta dele, contrai o corpo, contrai o rosto e aperta a beirada da cama com as mãos de pele alva. Em seguida, passa a segunda perna e faz o mesmo com o outro pé, causando agora um calafrio que sobe por seu corpo e deixa arrepiados os pelinhos dos braços até os ombros, com poros abertos que faço questão de deslizar os dedos para sentir. Aí você se arrepia mais, embora agora tenha controlado os reflexos do toque. Eu pergunto por que já vai e você diz, categórica, que tem de voltar para casa.
Embora contrariado, imediatamente aconchego-me às suas costas, envolvendo-a com o braço direito pela cintura e encaixando o peito na altura do cóccix. Deito a cabeça em um travesseiro ao lado de sua coxa esquerda e ali emprego um beijo silencioso, desses que você não quer mais descolar a boca. Eu alguma vez disse que gosto do cheiro da tua pele? Devo ter dito, pois sempre estive dizendo o que penso sobre o seu corpo ou sobre sua existência como um todo, fosse neste exato momento, fosse no dia que nos vimos pela primeira vez.
Vem aí o embate supremo: perguntas e respostas sobre o porquê você precisa ir, o porquê da pressa, o porquê da ânsia por sair da minha cama. Antes que sequer tenha o ímpeto de levantar, eu a bombardeio de questionamentos e pergunto o que é preciso para fazê-la desistir da vã ideia de partir. O que faço pra que tu fiques? eu pergunto. Você sorri como se a proposta fosse absurda, você sorri como se também não desejasse a possibilidade. Aí tenta levantar na direção do banheiro, mas eu a impeço. Você me olha com um meio sorriso ora confuso, ora desafiador, ora excitado pela afronta, tenta sair de novo e mais uma vez eu a impeço. Na terceira tentativa você ri mais alto e balança a cabeça, perguntando se eu não a deixarei sair daqui hoje. Minha resposta é imediata, óbvia e direta. Você balbucia um “Bobo” e abaixa a cabeça, fechando os olhos para um inevitável bocejo. Puxo seu corpo de volta para a cama e a surpresa me aplaca quando apenas se limita a sorrir e a se deixar conduzir uma vez mais aos lençóis.
Eu tinha que voltar pra casa, você diz, hesitante, como alguém que não consegue inventar nada além de uma mentira fajuta para escapar de um forte, pecaminoso e tentador convite. Vi teus olhos de negros vales submarinos arquitetarem quaisquer argumentos sólidos para me convencer, mas teu corpo, tua boca e o modo como coçava o topo da cabeça te traíam – cada um magistralmente. Em tua clara e prolongada falta de resposta, encaixo teu corpo pelo meu, enrolando braços e mãos e pernas e suspiros. É feriado lá fora, eu digo ao dar de ombros. Então que se foda tudo, digo por fim e você ri como se eu fosse um louco transgressor de leis, como se eu fosse algo que de fato valesse a pena possuir nesse mundo.
“Será que os mortos se incomodarão com isso?”, você pergunta com ar de zombaria. Eu te questiono e te indago, prostrando o rosto sobre teus peitos e te olhando direto nas órbitas negras. “Acha mesmo que os mortos se incomodarão com o que fizemos ou com tudo que faremos agora?”. Que audácia. Que audácia deles nos observarem e que audácia deles nos espionarem. Que audácia deles o incômodo. Então eu digo que “os mortos não importam mais”. Você sorri. Falávamos ao pé da letra, nada de metáforas. Talvez esta seja uma das tantas razões por eu gostar do seu cheiro (e por consequência de você, por inteira): você entende isso, você sempre entende o que digo.
Você fica um pouco mais enroscada em tudo o que está sobre essa cama e desiste de partir. Aí passam-se setes horas, você permanece pelas oito e se enrosca pelas nove; às dez, pede para levantar e enrolamos tempo, suor e carícias, até que são onze e você pede por café quente. Eu faço café e voltamos pra cama.
Observo pela janela que não está mais garoando.
Aliás, está um calor desgraçado agora, mas ninguém se importa.
É feriado lá fora.
Ótimo que seja.       



2 de dezembro de 2016

É Novembro outra vez



Hoje é o dia da Super Lua, eles dizem.
Mas estou parado na calçada, são mais de cinco horas da tarde e o novo supermercado do bairro está diante de mim, do outro lado da rua, vermelho e belo e atrativo e impiedoso e imponente como um milenar dragão chinês. Ao lado dele há um canal: imundo e pastoso, deprimente e solitário. A água está suja e ele está fluindo, cuspindo dos imensos dutos tudo o que nas casas foi consumido, digerido e expelido. Na rua que segue o canal, há um conjunto habitacional com uma sequência de quatro ou cinco prédios, empilhados no solo como dominós prestes a serem empurrados por dedos gigantes. A faixada dos prédios não é algo tão admirável, nem suas laterais, nem seus fundos, pois as paredes estão consumidas pelo tempo, pela chuva, pelo vento, pelo calor intenso e pelo descaso administrativo-habitacional. Toalhas e camisas e bermudas e meias e cuecas e calcinhas balançam-se nas grades como velhas amantes dando um último adeus aos seus maridos que partem num pobre Titanic. No topo dos prédios ou presos às próprias laterais, centenas de antenas improvisadas de tv a cabo afloram como os braços de capins em uma relva esquecida. O cenário é dos mais desprezíveis, não em termos de repulsa, mas em termos de banalidade. Eis alguns elementos que estiveram ali por tempo demais e ninguém sequer reparou. Eis a banalidade esquecida e invisível que esconde o algo belo nisso, algo belo que igualmente é em extremo banal, despercebido e ignorado. Por detrás do canal e do conjunto habitacional, há um céu claro e sem nuvens que faz brilhar um Sol magnífico e ofuscante – bem mais do que o dragão vermelho imponente jamais ousaria ofuscar em sua mais ancestral existência.
A Lua vai estar gigantesca hoje, eles dizem, como nunca estará pelas próximas décadas.
Mas ninguém vê, ninguém verdadeiramente enxerga que o Sol está se pondo naquele ponto. O Sol está ali, todo santo dia se pondo naquele exato lugar, precisa posição, sem ângulos a mais, sem ângulos a menos – isso, é claro, até o próximo e inabalável terremoto de escala 8.0 que abalará eixo terrestre, intocáveis vidas e frágeis memórias. O Sol, todas as tardes límpidas e livres de chuvas, está sempre desempenhando o seu glorioso e vívido papel por detrás daquele canal e daqueles prédios. Sempre no mesmo horário. Sempre com o mesmo brilho. Sempre quente. Sempre fervoroso. Sempre fiel. Porém ninguém o nota, não daquele ângulo, pelo menos. Ninguém verdadeiramente tem centrado um par de olhos saudáveis naquela direção e notado quão magnífica e digna é a dantesca obra de tão virtuoso Febo Apolo. Eterno, repetitivo, diário, porém único, mesmo que capturado por uma fração de segundos na câmera fotográfica da memória.
Estou parado na calçada e lá fora todas eles dizem que é a Super Lua hoje, mas é o Sol quem está diante de mim. É possível pensar tanto em tão pouco tempo? É possível pensar tanto em meio ao tempo de um semáforo? Eu amo a noite, eu a beijo com lábios ternos e sinto nela a palpitação da minha alma, mas é ao Sol que venero, é Nele onde cada amor é refletido, é Nele que cada amor corre e sorri em meio a uma manhã de Domingo ou em meio a um copo de cerveja enquanto se põe atrás da silhueta dela em uma tarde no Ver-o-Peso.
É ao Sol que venero, é no Verão que algo aqui pulsa.
É agora que Ele me acolhe e me faz refletir: esse, derradeiramente esse, esse é seu mês mais intenso, quando ninguém está verdadeiramente notando, quando ninguém está verdadeira sentindo.
É novembro outra vez.
Meu particular Periélio.