Estou na fila das bebidas.
Eles todos estão pedindo drinks
coloridos, misturas de álcool com coisas vermelhos e morango e iogurte e leite
e frutinhas e uvas passas e azeitonas e vietcongs e mais coisas esquisitas com
nomes bem elaborados e tropicais. De todos eles, eu só conheço a caipirinha. O
cara atrás do balcão balança a cabeça e pergunta o que eu quero, o parceiro dele
chega, dá uma sussurradinha no ouvido e eles pedem a minha identidade. Olho
para os lados e vejo adolescentes de dezesseis anos bebendo livremente como se
não houvesse amanhã e eu me pergunto Espera
aí, eles são meus parentes? Eu nunca sequer os vi antes, eu quase poderia
ser seu pai, mas estou aqui: confiscado pelos bem malhados e engomados fiscais
de menores. Dou de ombros. Mostro a identidade. O cara, com aqueles braços
imensos de baby-look apertadinho e tatuagem tribal e franjinha com gel caindo
na testa me devolve o documento e pergunta de novo o que vou beber, inclino-me
sobre o balcão e digo “que se foda”.
Dou as costas e peço uma Coca-Cola Zero ao garçom. No meio do corredor topo com
a minha avó, ela me diz as palavras de sempre, pergunta se eu já comi e se tem
refrigerante pra mim. Ergo a mão, mostro a bebida e agradeço por não ter pedido
a caipirinha, com certeza o mundinho de orgulho e amor dela por mim iria ruir,
então que as coisas fossem como tivessem de ser.
Contorno a velha e volto ao meu
lugar. Adolescentes de treze anos e dois metros de altura passam por mim – as
garotas, parecem ter três. Sento na mesa, ao lado das duas únicas primas legais que conheço e que me restaram. Abro um sorriso na direção delas e tento pela
décima terceira vez naquela noite puxar assunto, mas elas sutilmente me
ignoram. Sutil e educadamente, é claro, elas são boas e discretas demais para
aquilo. Então eu volto ao pensamento que me latejou a cabeça durante a noite
inteira enquanto aqueles flashes de luz colorida piscam ao redor e um tio passa
meio bêbado com um copo de whiskey ou um primo fanático por futebol bate no meu
ombro e pergunta outra vez pelo time que há muito eu detesto porque há muito eu
detesto futebol, mas eles não podem saber disso, porque ruiria todo o orgulho e
amor que têm por mim. Queria uma dose de scotch, mas rolaria o mesmo problema
com o orgulho e o amor e o falatório e toda aquela hipocrisia enquanto eles
enchiam a cara com suas artérias cheias de gordura e preconceito e barrigas
imensas e filhos fora do casamento. Apenas
os bons, saudáveis e merecedores bebem scotch, Júnior. Pela décima quarta
vez eu puxo assunto com minhas primas, faço outra brincadeirinha e novamente
elas me ignoram – dão aquela risadinha discreta como se gostassem de mim, como
se eu estivesse preso em um momento que passou, como se eu estivesse preso na
infância enquanto brincávamos e enquanto eu dancei valsa com elas em seus
quinze anos e enquanto elas ainda não viam em mim um escroto degenerado.
Mas agora os tempos mudaram e em meio
a um gole longo e pesado de Coca-Cola Zero eu sei o porquê. Então tudo bem,
então que tudo se foda. Se for pra ser assim, então que assim seja. Mantenha a reputação que agora te pertence:
dou um longo suspiro e direciono o olhar às menininhas que nunca vi na vida e
que não tenho certeza se de fato são minhas parentes. Há quanto tempo estive
recluso de minha própria família? Foda-se. Eu olho. A primeira que passa por
mim tem um rosto jovial, treze anos no máximo. Corpo de vinte. Olho a bundinha
dela e sorrio. Diziam por aí que eu seria um professor molestador de menores,
diziam por aí que eu era mais um naquele sádico saco de farinha fétido. Então
tudo bem, então que eu o fosse. Que
bundinha adorável. A segunda menina que passa tem duas bolas de basquete
pitorescas no lugar dos peitos, quinze ou dezesseis no máximo. Já dá um belo caldo. Suspiro e prendo os
meus olhos nos peitos dela com uma discrição tão fracassada quanto minhas
tentativas de recuperar a relação com minhas duas últimas primas
verdadeiramente legais. A garota das bolas de basquete passa, me encara, fica
com vergonha e apressa os passos. Olho para trás e agora ela também olha para
trás, então se reúne com as amigas e cochicha algo, visivelmente furiosa. Uma
delas, dezessete no máximo, olha para mim com imensos olhos verdes e
brilhantes, ela tem cabelos loiros e é uma belezinha, embora tão magricela e
pequena e frágil quanto eu. Ela me olha dos pés à cabeça e abre uma gargalhada
forçada, intencionalmente alta em meio ao pagodão que toca lá nos fundos do
salão para que eu saiba que fala de mim, para que eu perceba que ela está usando de
deboche como se eu não soubesse identificar um tão forçado e nada condizente.
Dou uma leve assentida e viro o
pescoço.
Olho de volta para as primas. Tento
pela décima quinta vez conversar sobre a situação política do país e o quanto
isso vai afetar a educação e o meu rabo num futuro não tão distante assim e a
loirinha aparece. Eu paro de falar. Estou assustado. Fodeu! Fodeu! Nunca provoque uma mulher histérica, principalmente se
ela for uma mulher histérica de dezessete anos que acha que vai mudar o mundo. Certo.
Comentário intencionalmente irônico. Exceto pela parte de mudar o mundo. Exceto
pela parte de “nunca provoque uma mulher”,
porque elas podem realmente foder com você, sua cabeça e sua reputação,
principalmente a reputação – o ódio das minhas primas era uma consequência
clara do quanto uma boa reputação estragada poderia por aí se espalhar e por aí
convencer. Mas que se fodesse, certo? Reputação é tudo. Você precisa
internalizar o que dizem a seu respeito, BoJack havia dito que “o sistema funciona”. A loirinha comenta
algo para elas e as duas rebatem com um ou dois comentários discretos, que
fazem a loirinha partir, porém sem antes me fuzilar com aqueles olhinhos
verdes. Ela vai e eu olho para trás, vejo a bundinha magra balançando e mordo o
lábio inferior, viro o pescoço e dou um gole na Coca-Cola.
- Mas acho que o Bolsonaro resolve, é
a única solução que vai trazer decência a esse país indecente. – Digo com um ar
despretensioso. Como se aquela merda não doesse na minha consciência. Mantenha o papel.
Mas que se fodesse, certo? Reputação
é tudo.
Minhas primas sorriem, pedem licença
e dizem que já voltam.
Pelo resto da noite, elas não voltam
para a mesa.
Nunca voltaram.
Peço outros cinco copos de Coca-Cola
ao garçom e puxo a camisa para fora da calça, enrolo as mangas acima dos
cotovelos e desabotoo o botão que me espreme o pescoço. Respiro fundo. A essa
altura, já estão todos dançando. Bêbados.
Minhas duas últimas agradáveis primas já estão agora em outra mesa, com outros
tios, outros primos e sendo discretamente educadas com gente que vale a pena. As meninas que eu
não tenho muita certeza se são minhas parentes continuam passando e sinto seus
olhares fulminantes sobre meus ombros, mas já não estou olhando, já fiz a minha
parte: mantive minha reputação intacta.
Outro gole na Coca. Queria mesmo era um Johnnie, mas apenas os bons tios e
primos com artérias cheias de gordura e preconceito e barrigas imensas e filhos
fora do casamento podiam beber, porque “isso
daqui não é pra ti, você é o doentinho superprotegido da família, beba seu
refrigerante”.
Então beleza.
Que se fodesse.
Volto à fila dos drinks que agora não
está tão cheia assim. O cara atrás do balcão, com o braço que é três vezes o
meu tamanho, o cabelo com franjinha caindo na testa, a tatuagem tribal e o
nariz empinado me pede, com escárnio, outra vez a identidade. Dou de ombros. Entrego
a ele de novo. Vai querer o quê?, ele
pergunta. Um desses aí de morango,
aponto com o dedo, mas sem álcool, por
favor.
Ele faz sua dança gigolô com as mãos ao
preparar a batida como se eu fosse uma de suas clientes adolescentes e alcoólatras
de quatorze anos, mas tudo bem, aqueles caras estavam liberados pela santíssima
permissão das meninas, eles sim podiam olhar com prazer e pedir números e
saírem isentos ao fim da noite – tudo porque não haviam conhecido garotas
histéricas para profanar seus nomes, nem primas verdadeiramente legais para
perder a fé neless ou colegas de família para julgá-los ou amigos ou conhecidos
ou quem quer que fosse para odiá-los. Cruzo os braços. Mentalmente, estou
repetindo um mantra: Jengou Yange Rongo Jun. Significa “vai se foder, bartender bombadinho” em dialeto tibetano.
Volto ao meu lugar. Dou uma sorvida
na bebidinha de morango sem álcool.
Isso, meninas, isso sim é bebida de
macho.
Dos escrotos.