Detalhes.
Marcelo era apegado aos detalhes.
Ele sempre adorou sentar na cozinha
da avó durante a infância, enquanto a dona Jaílma fazia seu famoso bolo de
laranja. Bolos são simples. Bolos de laranja são simples. O problema é que não
são todas as pessoas que nascem com a aptidão de fazer coisas simples. A dona
Jaílma, avó do Marcelo, caso tivesse nascido homem e em Cuba, certamente seria
um dos braços direitos de Fidel. Dona Jaílma, avó do Marcelo, caso tivesse nascido
homem exatamente onde nasceu, certamente seria um dos braços direitos do golpe
de 64. Mas dona Jaílma, avó de Marcelo, nasceu mulher em uma época e em um
mundo difícil para ser mulher e ser ditadora militar ao mesmo tempo, por isso
ela só ditava mesmo era na cozinha em dias comemorativos, como no aniversário
de Marcelo, quando sempre havia bolo de laranja.
Dona Jaílma era rainha naquele
território e Marcelo era o único que podia permanecer nele sem ouvir gritos ou
ser expulso com palavrões naquela voz rouca e arranhada de tantos anos de
tabaco. Esse era um detalhe. Era uma coisa simples da qual todos já estavam
acostumados: às seis horas da tarde, todo sagrado dia, quando a dona Jaílma ia
lá pro fundo do quintal fumar seu tabaco que ela sempre dizia não fumar para
ela, mas para outros. Marcelo só viria a entender o sentido do “fumar para outros”
muitos anos depois, quando suas noções acerca de Deus fossem extrapoladas pela
presença de outras entidades. Por enquanto, àquela altura da vida, Marcelo só
gostava do som metálico que fazia a voz da avó quando expulsava e ralhava todo
mundo que se aproximasse, porque fazer bolo de laranja, especialmente no
aniversário do único neto, era para a dona Jaílma um ritual sagrado.
Como fumar o tabaco todo fim de tarde.
Os primeiros sinais de que Marcelo
adorava detalhes surgiram justamente com o ato de observar cada ingrediente do
bolo de laranja. Marcelo nunca aprendeu a fazer um bolo de laranja, nunca nem
sequer desejou fazer um bolo de laranja, porque só havia uma única pessoa na face
da Terra capaz de fazer bolo de laranja que valesse a pena ser comido e
apreciado com o paladar. Dona Jaílma era essa pessoa e era a única a lidar com
os detalhes casuais de um bolo de laranja. Ela não tinha receitas e sempre que
alguém perguntava quais as medidas que faltavam acrescentar para fazer o bolo
de laranja, dona Jaílma respondia:
- Três ou quatro daquelas colheres
grandes de trigo e tá bom, minha filha. Tu dás uma olhada, mas é por aí.
E fim de papo.
O sal do cozido era a mesma coisa.
Dona Jaílma pegava com a ponta dos dedos e salpicava. Pronto. Ficava um baita
cozido perfeito. Ela tinha o que os cozinheiros caseiros e profissionais chamam
de tato. Dona Jaílma tinha tato para pequenos detalhes.
Assim como Marcelo.
Marcelo era um apreciador nato de
detalhes.
Nesse instante, agora adulto, Marcelo
observa um detalhe quase imperceptível: Rossana tem uma pintinha meio rosada
atrás do tornozelo. É um sinal, ele quase tem certeza, porque já havia notado
isso antes, há muito tempo. Era uma pintinha discreta, pouco menor que a unha
de um dedo mindinho adulto. Era disforme e ondulada, como uma ameba prestes a
fagocitar um corpo estranho. Ele deslizou a ponta do dedo indicador sobre a
mancha na pele, só para se certificar de que era um sinal e não algum tipo de
micose ou anomalia epidérmica.
Após se certificar do veredicto,
Marcelo acariciou aqueles pés de pele tão clara e lisa, porém não se ateve
muito àquela região no intuito de não acordá-la logo, pois planejava encontrar
mais detalhes que na noite anterior não fora capaz de descobrir. Por isso utilizou a ponta dos dedos ao longo
da perna dela, enquanto subia pelas panturrilhas levemente torneadas. Alguns
detalhes poderiam dizer muito sobre as pessoas, mas os detalhes de Rossana
diziam tão pouco a Marcelo que o máximo que pôde inferir, a respeito da vida
pregressa dela, era que não estivera enfiada em muitas aventuras ou situações
de risco. Nem tampouco parecia o tipo
desastrada de garota. Não havia cicatrizes em sua perna, nenhuma marca
sequer da infância, em nenhuma delas. O fato de ter vivido confinada em um
prédio de classe média alta não justificava a falta de correrias, pulos ou
travessuras. Porém descobriu outras pintinhas, em ambas as pernas, e na região
das coxas elas pareciam muito mais distribuídas e existentes. A pele clara
fazia com que elas não fossem negras, mas um pouco mais claras, algumas
marrons, quase transparentes, um pouco parecidas com a manchinha do tornozelo,
só que em estágio menos avançado de opacidade.
Foi durante a noite anterior que
descobriu, com grande esforço e merecida conquista, as pintinhas que salpicavam-na
os grandes lábios aqui e ali, como confetes em cima de um bolo de laranja com
recheio de chocolate. Subindo um pouco mais acima da cintura, Rossana era
pintada por detalhes em volta do umbigo e ao longo das costelas, três na direita e duas na esquerda. Mas
dessa vez, Marcelo prendeu-se no formato que o corpo dela fazia naquela
posição, adormecida de lado na cama com as curvas ora veladas pelo lençol, ora
desnudas para a manhã clara de outono. Ele brincou com os dedos pelas sinuosas
colinas que formavam seus quadris e cintura, descendo quase em queda livre pela
depressão que ali havia para novamente subir pelas costelas, passando pelas
pintas que havia descoberto e subindo pela lateral do seio esquerdo, onde ela
era enfeitada por uma constelação inteira de sardinhas quase tão transparentes
quanto aquela rosada do tornozelo. Marcelo deitou os lábios ali, entre os seios
dela, local que guardava certo cheiro de suor, certo cheiro de pele, carne e
intensidade.
As sardas subiam
pelos ombros e misturavam-se aos sinais do pescoço, quase tomando-a o rosto.
Marcelo também gostava do pescoço de Rossana: era bem desenhado, esguio e
sempre chamativo para um beijo ou outro. Afastou dali os cabelos ruivos para
que pudesse beijá-la melhor, e assim o fez, dando mordiscadas na pele bem
próximo a orelha, onde passou a mordê-la na pontinha e levemente a mastigar
como se fosse a última goma de mascar do planeta. A mistura de sensações ali
era como um mar de cores psicodélicas: havia perfume, havia o sabor da pele,
havia o sabor do suor seco, havia o sabor do perfume misturado ao da pele e
havia a textura dos poros e o roçar dos pelinhos.
Foi nesse momento
que a garota começou a despertar, abrindo os olhos com um sorrisinho meio
atordoado, finalmente compreendendo o que se passava. Ela esticou as pernas e
dobrou os dedos dos pés, quase espreguiçando-se como uma gata elegante e
manhosa.
- Bom dia. –
Sussurrou-lhe Marcelo.
- Bom dia. – Ela
continuou com o sorriso atordoado que logo transformou-se em algo próximo ao
incômodo. – Oh, meu Deus. Que horas são? – E procurou o celular por entre os
travesseiros.
- Qualquer hora,
por quê?
- Eu preciso ir. –
E levantou-se num salto.
Marcelo impediu
colocando a mão cauteloso sobre o peito dela.
- Eu tenho que ir
embora, agora.
- Ei, qual é a
pressa?
- Você sabe. – E arrumou
o cabelo ruivo em um rabo de cavalo improvisado. – Meu Deus, eu tenho que ir,
porra.
- Meu Deus, você é
linda. – Caçoou.
- Para de
brincadeira, cara. É sério. – E tirou a mão que estava em seu peito e saltou da
cama, dessa vez Marcelo não a impediu.
Ela procurou o que
quer que estivesse procurando pela cama, não encontrou e começou as buscas pelo
chão. Primeiro, encontrou a calcinha e a vestiu. Depois, o celular.
- Puta merda, são
dez da manhã.
- Cê tinha
compromisso?
- Tu é meio
retardado? – Perambulava em círculos pelo quarto, procurando o resto da roupa.
- Talvez. O que que
foi?
- E se a Lívia
chegar?
- A Lívia tá
viajando.
- Tem certeza?
- Ubum.
- Se qualquer outra
pessoa chegar?
- Ninguém vai
chegar.
- Tem certeza?
- Uhum.
- Para de agir como
se tudo fosse normal.
- Tudo parecia
normal ontem à noite.
- Mas não é,
Marcelo. A Lívia é minha amiga, isso não foi justo com ela.
- A vida nunca é
justa.
- Safado.
Marcelo deu de
ombros. Ela já tinha encontrado as calças quando ele a puxou pelo braço e a fez
se sentar em seu colo.
- Relaxa, garota.
- Vai se foder. Eu
não devia ter te dado ouvidos.
- Você deu mais do
que ouvidos ontem à noite.
- Ora, vai se
foder! – E deu um tabefe no rosto de Marcelo.
Ele a apertou pela
cintura e mordeu o queixo dela. Rossana nem sequer protestou.
- Isso não tá
certo, eu não devia ter feito isso. A Lívia é minha amiga.
- Você já disse
isso.
- Ah, meu Deus,
Marcelo. O que a gente fez?
- Sexo. – Ele a
beijou rapidamente na boca. Rossana não pareceu incomodada de devolver.
- Ah, meu Deus.
- Sim, você também
chamou muito por ele ontem.
- Vai se foder,
Marcelo. – Outro tabefe e outro beijo.
Rossana tentou
inúmeras vezes fugir dos braços de Marcelo, mas quanto mais as mãos dele a
prendiam com pulsos fortes pela cintura, pelas pernas ou pelas costas, menos
Rossana tinha vontade de sair. Parecia tentar fugir apenas por um senso
longínquo de moral e ética.
As mãos de Marcelo
subiram pelas costas da garota, apertou-a com dedos firmes e aplacou-a a nuca,
embrenhando os dedos por entre os cabelos naturalmente alaranjados e soltando o
rabo de cavalo que os fizeram cair pelos ombros. Marcelo cravou os lábios no
ombro direito dela e chupou o suficiente para deixar uma marca. Ela reclamou, porém
mais pareceu um gemido do que um protesto.
- Nós vamos pro
Inferno, Marcelo. – Ela riu entre um arfar e outro.
- Vamos sim, ah,
nós vamos.
Rossana inclinou o
pescoço para trás e Marcelo o beijou, afundando o rosto como um vampiro
esfomeado. As mãos desceram até as
pernas dela e afastaram a calcinha. A garota sentou para confirmar seu ticket
de ida.
- Porra, que
delícia.
- Cala a boca. –
Ela ordenou, arranhando as costas dele.
- Cacete, tá
maluca?
- Tamo no Inferno,
porra. – Deu de ombros enquanto pulava no pau duro dele.
Àquela altura a
ruiva já tinha os olhos fechados, para quem parecia se preocupar com a presença
da amiga ou a condição de pós-morte, estava lubrificada demais. Marcelo apenas
guiou o movimento dela com as mãos encaixadas na cintura, vez ou outra
levantando-a e descendo-a com mais força por seu pau enquanto ela gemia e o
mandava calar a porra da boca sempre que dizia uma coisa ou outra.
Selaram com uma
rapidinha, alguns “cala a boca”, tabefes na bunda, na cara e gemidos o roteiro
de viagem para o Inferno. Marcelo gozou fora, nas coxas dela, embora ele
quisesse mesmo era gozar dentro ou, no mínimo, naqueles pelinhos alaranjados
que cresciam na virilha.
Eram mais de onze da
manhã quando Rossana saiu do banheiro e vestiu as roupas. Os cabelos molhados, soltos e bagunçados.
Elas sempre saem de cabelo lavado no dia
seguinte de sua casa.
- Quer comer alguma
coisa?
- Nem se eu
quisesse, tenho é que dar logo o fora daqui.
- Já tivemos essa
conversa antes. – Marcelo sorriu.
- Ah, vai sonhando.
– Mostrou o dedo do meio. – Vê se lava esses lençóis e varre o quarto, limpa
tudo, cara.
- Pra quê isso?
- Ela pode
encontrar qualquer coisa por aqui. Até cabelo. Mulher é foda pra essas coisas,
Marcelo.
- A Lívia nem vai
notar.
- Eu conheço ela,
vai sim. Por favor, só não vacila. Ok? – Deu um beijo de despedida nele e foi
embora.
Para quem apreciava
detalhes, Marcelo sentiu-se um bobo por não pensar o óbvio.
Pela manhã, ele
varreu todo o quarto e até usou o aspirador de pó que havia comprado por
capricho na Polishop e que fora usado duas ou três vezes. Limpou o recipiente
que havia dentro da máquina e despejou tudo no lixo. Colocou todos os panos da
cama na máquina juntamente com as roupas que havia usado.
Pela tarde, Rossana
enviou uma mensagem: “Faz o que eu te
disse e não dá mancada, por favor. Eu gostei de ontem e como acordei hoje,
bjss! (apaga essa mensagem)”. Marcelo sorriu ao lembrar de cada detalhe da
garota e ao se certificar de que nada incriminador havia ficado pelo quarto.
Apagou a mensagem.
Pela noite, Lívia
ligou para ele:
- Eles retiveram os
documentos – ela disse, visivelmente cansada – e não pude voltar hoje à tarde.
Consegui passagem para amanhã de manhã, tudo bem?
- Tudo bem, amor.
- Te vejo amanhã,
desculpa atrasar tudo. Te amo!
- Também te amo.
Rossana e ele
trocaram mensagens. Ela já não parecia tão temerosa assim pela condenação ao
Inferno. Ele perguntou a ela qual o perfume usava, porque imediatamente lembrou
do corpo da garota, lembrou a próxima vez em que se veriam, lembrou da
manchinha atrás do tornozelo e, consequentemente, lembrou de como detalhes eram
importantes.
Lembrou-se da dona
Jaílma e o famigerado bolo de laranja. Detalhes.
- Qual perfume você
usa? – Ele perguntou.
- O quê? Por quê?
- Só me diz.
- Aquele verde que
vende na farmácia.
- Porra, na
farmácia?
- É, por quê?
- Por nada.
Na mesma noite,
Marcelo foi à farmácia e encontrou o perfume verde, o destampou para se
certificar e comprou-o no débito automático.
No dia seguinte,
quando Lívia voltasse de viagem, ela perguntaria que perfume era aquele. Marcelo
responderia que saiu de casa para o trabalho e esquecera de passar perfume, então
fora à farmácia para comprar o primeiro que encontrasse e o salvasse do
perrengue envolvendo fedor e suor. Lívia acreditaria. Isso facilitaria as
coisas. Ela jamais julgaria que o perfume na roupa dele ou nos lençóis seria de
sua amiga, mas sim do novo perfume estranho que Marcelo andava usando.
Detalhes.
Marcelo era apegado
aos detalhes, desde a infância analisando os ingredientes do bolo de laranja da
dona Jaílma, até a idade atual, enquanto ansiava por ver mais uma vez aquela
manchinha rosada no tornozelo de Rossana.
Detalhes: “O Diabo está nos detalhes”, era o que as
pessoas diziam.
Marcelo sabia
disso. Marcelo sabia também que são os detalhes que te levam ao Inferno.
Ele adorava ir ao
Inferno.