Sapatos brancos.
Era dos sapatos que meus olhos não saíam,
meus olhos zonzos e perdidos, aqueles que passaram a manhã inteira tentando
manter o foco, concordando com o que todos eles dizem e tudo o que repreendiam –
“não faça isso de novo”, “Meu Deus, você
teve sorte”, “por que você fez isso?”. O melhor deles foi o primeiro
enfermeiro: fitava-me com aqueles ternos e assustados olhares, quase como se
enxergasse um fantasma ou um milagre da medicina moderna em sua frente enquanto
eu respondia com sinceridade a todo o questionário que aplicava. Foi engraçado.
Foi engraçado ver aquela expressão, pois foi a mais sincera naquela manhã: real
expressão de alarme, rosto tenso, incrédulo. Os rostos que vieram em seguida
foram todos de estranho julgamento: trataram-me como um louco varrido do qual
você não pode chamar de louco varrido porque precisa manter a compostura de seu
trabalho. Os olhos de todos esses que vieram em seguida em nada diferiam: louco varrido! Em sincero? Extremamente
engraçado. Mas eu estava
bem. Eu estava como Drew a caminho da demissão de quase 1 bilhão de dólares. “Estou bem”, “estou bem”, “estou bem”, dizia
eu enquanto refletia sobre a filosofia do fiasco ou enquanto o mundo parecia
completamente mais lento e minha cabeça confortavelmente pesada, relaxada. Eu estava
chapado, o que era engraçado, a julgar pela ironia da coisa – era para estar
espumando pela boca, era para ser derradeiro, era para ser uma despedida, era
para ser dramático, era para ser um show triunfal, mas limitou-se a ser
divertido e aventuresco – porque a brisa foi intensa. Eu era como Drew. “Estou bem”, “estou bem”, “estou bem”.
Aí enfiaram-me em uma ala. Deram-me
até um local para deitar e uma pulseirinha colorida de cor quente, reservada
apenas aos casos mais graves. Disseram que era impossível lavar o que quer que
estivesse dentro de mim, porque o que quer que estivesse dentro de mim já
estava diluído. “Completamente”, dissera
o médico brutamontes que igualmente me olhava com aqueles olhos de triste
julgamento. Eu era Drew: “estou bem”, “estou
bem”, “estou bem”. E por Deus, eu realmente estava: chapado, rindo por
dentro e absorvendo aqueles olhares com diversão. No fim, eu só conseguia
pensar: vai dar um bom texto, no fim sempre acaba se resumindo a um bom texto.
Vieram os sapatos brancos. Sapatos
brancos de cabelos loiros e olhos sutilmente esverdeados. Sapatos brancos de
1,65 de altura. Sapatos brancos que pela primeira vez no dia fizeram-me
questionar a natureza dos meus atos – por breves trinta segundos, não mais que
isso. Não houve tempo para arrependimentos, era tudo uma questão de diversão:
uma viagem planejada que não dá certo porque o x-calabresa do restaurante de
estrada traiu o intestino do seu amigo sentado ao lado, deixando um quadro
surrealista pintado no carro. A viagem planejada fora pelo ralo, e agora eu
tinha uma penca de consequências a lidar: olhares, conversas, decisões
terceiras, matrículas forçadas em programas de assistência social e afirmações
de que faltava Deus no coração. O fato é que durante toda a manhã, o que me
distraiu foram aqueles sapatos brancos. Eram silenciosos e sempre atenciosos
quando vinham furar-me os braços e procurar uma veia. Eram compenetrados, mas não
menos curiosos – atentos sempre que surgia um comentário ou sempre que
relembrava os dados da minha ficha. Vez ou outra arriscavam-se em minha direção,
o que eu permitia fingindo estar distante demais para notar. Então esses
sapatos brancos saíam para ocupar-se com uma velhinha com articulações pulsando
ou adolescentes de vinte e sete anos com medo de agulha. Aqueles sapatos
brancos iam de lá para cá, toc-toc discreto
e passos deslizantes, suaves, delicados. Havia naqueles sapatos uma tatuagem –
exatamente do lado esquerdo, se assim não me falha a zonza memória. Talvez um
ramo de flores ou raízes enroladas; talvez uma tribal, talvez borboletas
entrelaçadas para cobrir o nome do distante e esquecido pretendente. Havia também
na lateral do pulso outra tatuagem: uma palavra ou um nome, uma expressão em
latim ou nome da mãe, do gato ou do bondoso e apedrejado Jesus Cristo. Sapatos
brancos por uma manhã inteira feitos de detalhes, minúcias as quais eu me
prendia com ligeira covardia, pois não estava necessariamente pronto para
pensar o que aconteceria quando eu saísse daquela ala. Sapatos brancos que me
olhavam não com o julgamento que veio antes, mas com a pena, a dúvida e compassível
tristeza: por que? Sapatos brancos
que eu por outros trinta segundos desejei buscar o nome, porque agora eu não
tinha absolutamente nada a perder ou ganhar lá fora. Sapatos brancos que eu
deixei passar, sequer reparando para a costura no jaleco – pois estavam meus
olhos zonzos e embaçados demais. Sapatos brancos que eu deixei passar por uma
manhã estranha de viagem arruinada pela arte do amigo ao lado.
Sapatos brancos que eu deixaria
passar em qualquer outra ocasião, fosse por timidez, fosse por prendimento a
outros sapatos.
Sapatos brancos que eu nunca mais
voltarei a ver e que, sincera e dolorosamente, eu nunca desejaria ter visto.
Quem dera algumas viagens não fossem interrompidas.