19 de agosto de 2016

Sapatos brancos



Sapatos brancos.
Era dos sapatos que meus olhos não saíam, meus olhos zonzos e perdidos, aqueles que passaram a manhã inteira tentando manter o foco, concordando com o que todos eles dizem e tudo o que repreendiam – “não faça isso de novo”, “Meu Deus, você teve sorte”, “por que você fez isso?”. O melhor deles foi o primeiro enfermeiro: fitava-me com aqueles ternos e assustados olhares, quase como se enxergasse um fantasma ou um milagre da medicina moderna em sua frente enquanto eu respondia com sinceridade a todo o questionário que aplicava. Foi engraçado. Foi engraçado ver aquela expressão, pois foi a mais sincera naquela manhã: real expressão de alarme, rosto tenso, incrédulo. Os rostos que vieram em seguida foram todos de estranho julgamento: trataram-me como um louco varrido do qual você não pode chamar de louco varrido porque precisa manter a compostura de seu trabalho. Os olhos de todos esses que vieram em seguida em nada diferiam: louco varrido! Em sincero? Extremamente engraçado. Mas eu estava bem. Eu estava como Drew a caminho da demissão de quase 1 bilhão de dólares. “Estou bem”, “estou bem”, “estou bem”, dizia eu enquanto refletia sobre a filosofia do fiasco ou enquanto o mundo parecia completamente mais lento e minha cabeça confortavelmente pesada, relaxada. Eu estava chapado, o que era engraçado, a julgar pela ironia da coisa – era para estar espumando pela boca, era para ser derradeiro, era para ser uma despedida, era para ser dramático, era para ser um show triunfal, mas limitou-se a ser divertido e aventuresco – porque a brisa foi intensa. Eu era como Drew. “Estou bem”, “estou bem”, “estou bem”.  
Aí enfiaram-me em uma ala. Deram-me até um local para deitar e uma pulseirinha colorida de cor quente, reservada apenas aos casos mais graves. Disseram que era impossível lavar o que quer que estivesse dentro de mim, porque o que quer que estivesse dentro de mim já estava diluído. “Completamente”, dissera o médico brutamontes que igualmente me olhava com aqueles olhos de triste julgamento. Eu era Drew: “estou bem”, “estou bem”, “estou bem”. E por Deus, eu realmente estava: chapado, rindo por dentro e absorvendo aqueles olhares com diversão. No fim, eu só conseguia pensar: vai dar um bom texto, no fim sempre acaba se resumindo a um bom texto.
Vieram os sapatos brancos. Sapatos brancos de cabelos loiros e olhos sutilmente esverdeados. Sapatos brancos de 1,65 de altura. Sapatos brancos que pela primeira vez no dia fizeram-me questionar a natureza dos meus atos – por breves trinta segundos, não mais que isso. Não houve tempo para arrependimentos, era tudo uma questão de diversão: uma viagem planejada que não dá certo porque o x-calabresa do restaurante de estrada traiu o intestino do seu amigo sentado ao lado, deixando um quadro surrealista pintado no carro. A viagem planejada fora pelo ralo, e agora eu tinha uma penca de consequências a lidar: olhares, conversas, decisões terceiras, matrículas forçadas em programas de assistência social e afirmações de que faltava Deus no coração. O fato é que durante toda a manhã, o que me distraiu foram aqueles sapatos brancos. Eram silenciosos e sempre atenciosos quando vinham furar-me os braços e procurar uma veia. Eram compenetrados, mas não menos curiosos – atentos sempre que surgia um comentário ou sempre que relembrava os dados da minha ficha. Vez ou outra arriscavam-se em minha direção, o que eu permitia fingindo estar distante demais para notar. Então esses sapatos brancos saíam para ocupar-se com uma velhinha com articulações pulsando ou adolescentes de vinte e sete anos com medo de agulha. Aqueles sapatos brancos iam de lá para cá, toc-toc discreto e passos deslizantes, suaves, delicados. Havia naqueles sapatos uma tatuagem – exatamente do lado esquerdo, se assim não me falha a zonza memória. Talvez um ramo de flores ou raízes enroladas; talvez uma tribal, talvez borboletas entrelaçadas para cobrir o nome do distante e esquecido pretendente. Havia também na lateral do pulso outra tatuagem: uma palavra ou um nome, uma expressão em latim ou nome da mãe, do gato ou do bondoso e apedrejado Jesus Cristo. Sapatos brancos por uma manhã inteira feitos de detalhes, minúcias as quais eu me prendia com ligeira covardia, pois não estava necessariamente pronto para pensar o que aconteceria quando eu saísse daquela ala. Sapatos brancos que me olhavam não com o julgamento que veio antes, mas com a pena, a dúvida e compassível tristeza: por que? Sapatos brancos que eu por outros trinta segundos desejei buscar o nome, porque agora eu não tinha absolutamente nada a perder ou ganhar lá fora. Sapatos brancos que eu deixei passar, sequer reparando para a costura no jaleco – pois estavam meus olhos zonzos e embaçados demais. Sapatos brancos que eu deixei passar por uma manhã estranha de viagem arruinada pela arte do amigo ao lado.
Sapatos brancos que eu deixaria passar em qualquer outra ocasião, fosse por timidez, fosse por prendimento a outros sapatos.
Sapatos brancos que eu nunca mais voltarei a ver e que, sincera e dolorosamente, eu nunca desejaria ter visto.
Quem dera algumas viagens não fossem interrompidas.