19 de julho de 2016

A minha vontade é a lei



Por prazer, serei o que quero, mesmo que o meu desejo são não seja. Pois minha vontade é a lei, embora a lei birra seja. Serei não por mim o que quero, mas por todos os que de mim não querem. Pois minha vontade é a lei, embora a lei birra seja. Faço das palavras do mais perverso dos homens o meu alicerce, não porque planejo segui-lo em ideologia, crença ou prática, mas porque minha lei ordena e somente a ela devo obedecer. Subverterei suas palavras e dobrarei a natureza da perversidade para os meus objetivos, sonhos e vinganças – subverterei a natureza de sua perversidade para a minha lei, embora mesquinha minha lei seja.
Por um nome ou por um coro deles, serei o que quero, mesmo que minha imagem pacífica não seja. Pois minha vontade é a lei, embora retaliação a lei seja. Serei por todos tudo o que não querem de mim: imaturo, fiel impulsivo, guerreiro, odioso, pútrido sincero, colérico, arauto da discórdia, amante da guerra e espectador da glória. Abrirei portas para a fúria, soltarei as amarras dos cães – deixarei que contra os falsos castos ladram e que os fiéis pecadores mordam. Pois minha vontade é a lei, embora a lei pagamento seja. Serei para os aliados tão perverso quanto o homem que subverto, pois nem a ele obedeço. Pois minha vontade é a lei, embora pessoal a lei seja.
Por orgulho serei o que quero, mesmo que vilanesco meu âmago não seja. Pois minha vontade é a lei, embora desagravo a lei seja. Serei pela imemorial história um falador, arauto da fissura e carrasco do rancor. Afogarei com deleite as inimizades e degolarei sem temor as amizades. Para os amores irei mais fundo: cuspirei, amassarei e devorarei, para eles minha lei do revide ferrenha será – pois cada fato lembrado é um ato constante vivido, ressurgido e não aglutinado.
Por cada risada, deboche constante ou trocadilho corriqueiro, serei o que quero, mesmo que justificada minha vingança não seja. Serei não o que em mim escondido dormia, mas o que de escarlate eu já invocava: serei irritante, retrógrado, carrancudo, insuportável perseguidor e austero egoísta, destruidor das boas novas e arauto do caos. Serei inteligência suprema, arrogância desmedida, serei ego invencível, senhorial incorrigível e íntegro perfeito. Serei cinza e negro, a supremacia pessimista; serei assassino tenro, profanador niilista. Serei conservador desnecessário, cômico misógino; serei maldito emissário, agressivo misantrópico. Serei odioso e odiado, serei perseguido e evitado. Serei esmagador de açougueiros, inimigo das putas; serei matador de abutres e de existências fajutas. Serei carrasco dos burros, caçador dos hipócritas; serei piadista solene das misérias incautas. Serei tudo o que deplorou as amadas: mentiroso amável e agressor das curvas, corretíssimo ser humano e ignóbil compreensível; olhador torto, juiz seletivo. Serei nas bocas falado, serei nas bocas mal definido. Serei para sempre culpado, serei constante ferido. Serei mentira e verdade – sobretudo a verdade. Serei de mim o que nunca delirei nem nas noites mais sombrias, serei de mim o que por séculos combati em vida carcomida. Serei demônio e Diabo. Serei anjo e Deus.  Serei certo e errado, serei ira divina.
Pois minha vontade é a lei, embora a lei derradeiro ódio seja.
Pois minha vontade é a lei, embora a lei distorcida seja.
Pois minha vontade é a lei e nem o mais perverso dos homens há de negar.



2 de julho de 2016

Logo ela





Eu tenho de aceitar, pelas leis naturais da vida, que tudo um dia morre.
Logo ela, que esteve tão presente em cada perspectiva minha de planos, expectativas ou sonhos, agora me assola da maneira que menos imaginei. Logo ela: essa morte tão eminente, voraz e inevitável, que agarrou-se em cada ato, desato, em cada palavra dita e sobretudo as não ditas. Impregnou-se nos abraços e infestou-se nos beijos meramente beijados. Logo ela, essa morte tão profetizada que não me deu horas para o preparo, nem segundos para a antecipação necessária; logo ela que veio antes do aviso, veio sem aviso, apressada com décadas de adiantamento.  Essa morte que contrariando as expectativas do público, não partiu de mim – pois está aqui o meu complexo de Cassandra, está exatamente aqui a minha inicial e milenar consciência de que a morte me aplacaria vindo de fora e não de dentro, pois seria eu aquele jogado na cova, e não aquele que joga. Vindo de fora, partindo do outro lado da margem e daquele peito atrelado às confusões de braços e pernas sobre a cama, através de beijos frívolos, mordiscadas no lábio inferior ou um olhar enviesado de desconcerto, eu sempre soube que um dia a morte chegaria, só não imaginava que tão cedo, só não imaginava logo quando eu finalmente vinha me encaixando.
Porém a morte é tão culpada por matar quanto a lesma por existir, e de todas as causas pertinentes, eu estive em quase todas elas – mas para o bem da prosa e da vã poesia, pelo bem de todos os envolvidos, é melhor dizer que “estive em todas”, com absoluta precisão. Pois fui eu que a causei e por ela implorei: nas letras brincadas, nas melodias desprezadas, nos elogios não feitos e consequentemente em todos aqueles esporádicos cavalheiros que o fizeram por mim incessantemente ao longo de uma vida inteira em que permaneci calado, imóvel, indiferente. Por todos ou os poucos cavalheiros que o fizeram e conseguiram, alcançaram o pódio, conquistaram a glória. Pela aproximação dessa morte eu aceito a culpa, não de forma dramática, melódica ou vitimista, apenas a aceito com estranha consciência que vez ou outra possui seus picos de escárnio, ódio e cólera. 
Como bem disse Hank Moody:

Estou aceitando culpa por tudo. Vulcões, terremotos, derramamentos de petróleo, esteroides, músicas de rap. É tudo minha culpa”.

Toda minha, mesmo sabendo que cada ato que me trouxe até aqui, no final, ora, cedo ou tarde me traria até aqui. A única peça consciente que faltou nessa estranha consciência foi a ponderação da dor, do descontrole e da perda das capacidades de maturidade, pois não há sabedoria que o prepare para a troca, não há filosofia que o faça aguardar, de fato, a tão lamentável morte.
E se morremos desde já ou desde sempre, isso sempre foi minha culpa.
Minha e de mais ninguém.



1 de julho de 2016

Perdoe-me pela sua morte



Perdoe-me pela notícia: você está morta.
Perdoe-me por ser tão abrupto nas breves palavras, mas na falta delas os sussurros já se faziam claros há algumas estações. Perdoe-me também por abandoná-la em qualquer esquina ou em uma segunda-feira qualquer, ante o desespero de encontrar forças para uma significação última que eu, bobo, não notara o desaparecimento. Perdoe-me por desová-la em um beco qualquer, de uma ruela qualquer, de um bairro qualquer. Perdoe-me por não honrar o romance que trouxe comigo por toda “nossa” existência, mas fui eu a carregar esses dois corpos que não mais unidos eram – carreguei-a com meus ombros ralados, sustentei-a com meus braços vacilantes, fui até o fim enquanto todas as línguas duvidam do meu fervor e caçoavam da missão. Perdoe-me, inclusive, por não ceder à palavra mais reles, impura e indigna do teu rosto: é que desapego nunca esteve no meu dicionário tão facilmente como nos dicionários de todos os outros. Daí o fato de eu carregá-la tão longe, daí o fato dessa jornada ter durado praticamente uma vida inteira, afinal o tempo é longo para aqueles que pelejam. Perdoe-me por hoje calar-me nas palavras (perdoe-me por nem sequer tê-las como outrora), por carecer o que antes foi meu combustível diário, mas a verdade em si é que sua morte não ocorreu de um dia para noite: ela foi gradativa enquanto nem eu percebia, ela foi gradativa quando nem eu queria. Você morreu em uma esquina qualquer em uma quarta-feira temorosa, quando em uma canção busquei em ti os vestígios da vida passada – a nossa vida passada, pelo menos na vã utopia do meu íntimo. Você morreu quando encontrei na busca de uma canção para ti, o abrigo em outra. Você morreu quando encontrei abrigo em uma improvável, mais acolhedora, mais real e mais quente morada. Perdoe-me por nunca oficialmente enviá-la um adeus, é que julguei desnecessário: há tempos só havia ecos por essas bandas de gritos meus desesperados, carentes por atenção e carentes por um retorno impossível. Estive aqui por tempo demais, construindo dedicações primorosas que cedo ou tarde o tempo apagaria o significado, permanecendo somente o estético.
Perdoe-me pela sua morte, mas ela foi tão necessária para mim quanto o sopro de vida para um messias. Sua morte não se deu em um raiar de sol, deu-se por uma estação inteira, maturando a próxima, preparando-me para a desesperada experiência de ser menino de novo, imaturo, desconhecedor do mundo e dos segredos escondidos em longos cabelos. Agora eu troquei a cor, troquei a pele, troquei os sonhos e troquei o arranjo das letras do nome. Agora eu troquei de vida, embora não tenha a mínima certeza do quão longe esta estação irá – o tempo não importa, pois enquanto carrego esta nova estação com todo vigor meu, para o relógio não ouso olhar. Uma vida se passou e que agora outra vida igualmente se passe. Que outro corpo eu carregue pela próxima meia-década, que outras tão belas e primorosas palavras eu construa, que a atual vida me renda também boas construções, boas memórias e belos significados. Atualmente, muito mais do que você jamais rendeu, pois eu mais te carreguei do que te devorei.
Perdoe-me por não glorificar sua morte, perdoe-me por “esquecê-la tão rápido” como dizem os olhos alheios.
É que encontrei eu vida melhor no caminho.
Perdoe-me pela sua morte, é que encontrei eu vida melhor no teu natural esquecimento – a melhor coisa que me aconteceu.