3 de abril de 2016

Território inimigo




Aos vinte e dois anos julguei que teria constituição cômica e psicológica de encarar todos aqueles músculos subindo e descendo, articulando-se em aparelhos pesados e bumbuns torneados levantando alguns quilos aqui, segurando outros ali. O primeiro dia foi o mais estranho deles: ensandecido por uma vontade desconhecida, rompi com o conforto e atravessei a rua. Cadastro. Descrições patológicas. Questionário babaca que ninguém leria. Questionário babaca que ninguém se importava. RG. CPF. CEP. Endereço. Email. Assinatura. Pronto. SEJA BEM-VINDO. Saí dali imaginando que dessa vez iria, que dessa vez algo seria diferente. Piso em casa, respiro fundo. Troco de roupa, preparo os fones de ouvido. Saio de caso e entro ali novamente e sou entregue aos cuidados de um instrutor de dois metros de altura. Cara bonitão, atende pelo nome de Bruno-Black. Bruno-Black me olha de cima a baixo e pergunta o que exatamente quero ali dentro, então respondo o óbvio: “ganhar massa muscular, caralho, não tá vendo?”. Mentira. Privo-me a um curto "ganhar massa muscular e controle do diabetes". Bruno-Black escuta apenas a primeira parte, a segunda ignora. Me conduz então aos aparelhos. Soca uma sobrecarga que, sinceramente, não sou capaz de levantar. Reclamo com ele. Bruno-Black diminui sensivelmente o peso. Faço um esforço, aquilo mais me parece uma tortura do que prazer. Durante as repetições, tento imaginar o que Rocky Balboa faria, o quão duro ele trabalharia. Penso igualmente em Léo Stronda e o que ele diria (ou, assim como todos em volta, o quanto se divertiria). FRANGO. Cumpro com a carga, caminho feito uma mula pateta atrás de Bruno-Black. Eu não tenho a mínima ideia do que fazer ali dentro ou como lidar com aqueles instrumentos, é um Desadorável Mundo Novo. Encontro o Bruno-Black que então me passa uma nova tarefa. Corrige aqui. Corrige ali. Pé pra trás. Não abre muito o braço. Isso. Segura. Quatro repetições de dez. Vai. Eu não tenho diploma algum nessa carreira, mas algo me diz que Bruno-Black está passando peso demais para meus braços finos e corpo esquelético – e não, isso não é desculpa esfarrapada de preguiçoso. Meus braços doem. Meus braços nem levantam a porra dos quilos. Sem que ninguém perceba, diminuo o peso. Agora vai. E agora até que foi, bem devagar e com esforço, mas agora foi. Uma, duas, três, quatro repetições. Não sinto meu braço. Vou beber água só para disfarçar. Vem aquela sensação de que estão todos os malhadinhos olhando em minha direção. Tento comprovar só para não dar voz às minhas especulações paranoicas, mas não adianta: eles estão olhando e o param de fazer no instante que dou uma espiada, até a risadinha entre eles é disfarçada. Troco de música pela décima sexta vez, finjo checar algo importante no celular. Aumento o volume. Diminuo o volume. Troco e destroco de faixa. Procuro novamente Bruno-Black. Não o encontro. Rodo a academia, eu já quase a conheço inteira só nos últimos minutos. Encontro o grandão. Pergunto terminei lá, e agora? E ele responde vem aqui, eu vou e ele fica em dúvida, procura um aparelho, depois desiste e me coloca em outro e diz agora faz de novo mais quatro de dez e eu faço, outra vez com aquele mesmo probleminha com o peso. Aparece então na minha frente uma garota linda com roupa colada. Ela empina a buzanfa pra cima, sobe a perna e desce. Ela realmente é linda, mas de repente o que mais me chama atenção não é aquele corpo, e sim o tipo de olhar que o cara que segundos antes a tinha cumprimentado como um bom amigo, começa a dar na direção dela. Ele olha e tenta disfarçar, mas não consegue parar de olhar. Surge então um outro, passa por ele e dá aquela levantada dupla de sobrancelhas. Os dois trocam uma risadinha silenciosa e voltam aos seus exercícios. Em meio a isso eu termino a minha tarefa. Pelo bem da humanidade e em solidariedade à menina, livro-a do meu olhar em sua direção. Não ganho biscoitos por isso. Nunca mais volto a vê-la e nem a cor da legging que usava eu lembro mais. Procuro o Bruno-Black. Outro aparelho, outra indecisão quanto ao peso, outra vez eu me esforço. Dou um leve suspiro, tudo bem, a culpa não é do instrutor por estar acostumado a velhos barrigudos e caras gigantes frequentadores da Igreja do Sétimo Dia do Reino do Whey. Ele não é obrigado a saber lidar com gente assim, finérrima. Troco de música. Noto mais uma ou duas risadinhas. Praguejo por estar no território deles, não no meu. Bebo mais água, e começo a gritar por dentro que porra tô fazendo aqui? Vou atrás do Bruno-Black, ele diz que chega por hoje. Pergunto se posso andar na esteira, porque preciso queimar toda a tonelada de açúcar correndo por minhas veias de diabetes hiper-descontrolada. Ele me pergunta abismado mas tu não queres ganhar massa? É aí que tenho a certeza que nem sequer escutou a parte sobre eu ser diabético, que nem deve saber o que diabetes é, e que tudo o que prestou atenção foi a parte sobre ganhar massa – que é a que ele está condicionado a trabalhar. Subo as escadas. Ligo a esteira. Finjo que sei o que estou fazendo da vida. Um, dois, três, quatro e cinco minutos. Pronto, já chega. Desço as escadas e encontro com o Bruno-Black. Ele se despede e me passa o número dele, diz pra eu mandar uma mensagem pedindo dicas de alimentação pra ajudar no ganho de massa muscular. À noite, em casa, envio a mensagem. Até hoje Bruno-Black nunca respondeu. Dois dias depois volto ao território inimigo. Utilizo os mesmos aparelhos, porque são os únicos que aprendi a usar. Diminuo o peso, mexo no celular, bebo mais água do que o normal – só pra disfarçar. Assim como no outro dia, são três horas da tarde e comprovo que mesmo no horário do Sol as pessoas conseguem lotar a academia. E eu que imaginei quanto menos gente, melhor. Estão todos olhando. Subo as escadas, tento usar a esteira, estão todas ocupadas. Não tenho saco para esperar, lá se vai minha tentativa frustrada de fazer valer a pena todo o dinheiro que fiz na matrícula. Vou embora dali, menos de 30 minutos desde que cheguei. Volto para casa, meus braços não esticam, ainda doem pra desgraça e quase posso notá-los roxos. Vinte e oito dias depois e toda minha família ainda acha que estou frequentando aquele antro de esbeltez humana. Gasto o dinheiro do segundo mês de mensalidade com comida – frituras, colesterol e felicidade. Felicidade – está aí uma expressão que não vi em nenhum daqueles rostos na academia, privando-se de comerem isso ou aquilo outro, choramingando porque mais um pedaço vai parar meu coração ou entupir minhas artérias. Tinha vinte e dois anos nas costas e conclui que jamais serei esse tipo bastardo de ser humano, e que o Senhor Deus me perdoasse a generalização e o preconceito, mas era a minha verdade – pois assim são certas generalizações e certos preconceitos. Vinte e dois anos nas costas e não tinha constituição psicológica ou maturidade para entrar, de novo, em território inimigo. Vinte e dois anos nas costas e durei dois dias na academia.