Aos vinte e dois anos julguei
que teria constituição cômica e psicológica de encarar todos aqueles músculos
subindo e descendo, articulando-se em aparelhos pesados e bumbuns torneados
levantando alguns quilos aqui, segurando outros ali. O primeiro dia foi o mais
estranho deles: ensandecido por uma vontade desconhecida, rompi com o conforto
e atravessei a rua. Cadastro. Descrições patológicas. Questionário babaca que
ninguém leria. Questionário babaca que ninguém se importava. RG. CPF. CEP.
Endereço. Email. Assinatura. Pronto. SEJA BEM-VINDO. Saí dali
imaginando que dessa vez iria, que dessa vez algo seria diferente. Piso em
casa, respiro fundo. Troco de roupa, preparo os fones de ouvido. Saio de caso e entro ali
novamente e sou entregue aos cuidados de um instrutor de dois metros de
altura. Cara bonitão, atende pelo nome de Bruno-Black. Bruno-Black me olha de
cima a baixo e pergunta o que exatamente quero ali dentro, então respondo o
óbvio: “ganhar massa muscular, caralho, não tá vendo?”. Mentira. Privo-me a um
curto "ganhar massa muscular e controle do diabetes". Bruno-Black escuta apenas
a primeira parte, a segunda ignora. Me conduz então aos aparelhos. Soca uma
sobrecarga que, sinceramente, não sou capaz de levantar. Reclamo com ele.
Bruno-Black diminui sensivelmente o peso. Faço um esforço, aquilo mais me
parece uma tortura do que prazer. Durante as repetições, tento imaginar o que
Rocky Balboa faria, o quão duro ele trabalharia. Penso igualmente em Léo
Stronda e o que ele diria (ou, assim como todos em volta, o quanto se
divertiria). FRANGO. Cumpro com a carga, caminho feito uma mula pateta atrás de
Bruno-Black. Eu não tenho a mínima ideia do que fazer ali dentro ou como lidar
com aqueles instrumentos, é um Desadorável Mundo Novo. Encontro o Bruno-Black que então me passa uma nova tarefa. Corrige aqui. Corrige ali. Pé pra trás. Não
abre muito o braço. Isso. Segura. Quatro repetições de dez. Vai. Eu não tenho
diploma algum nessa carreira, mas algo me diz que Bruno-Black está passando
peso demais para meus braços finos e corpo esquelético – e não, isso não é
desculpa esfarrapada de preguiçoso. Meus braços doem. Meus braços nem levantam
a porra dos quilos. Sem que ninguém perceba, diminuo o peso. Agora vai. E agora
até que foi, bem devagar e com esforço, mas agora foi. Uma, duas, três, quatro
repetições. Não sinto meu braço. Vou beber água só para disfarçar. Vem aquela
sensação de que estão todos os malhadinhos olhando em minha direção. Tento
comprovar só para não dar voz às minhas especulações paranoicas, mas não
adianta: eles estão olhando e o param de fazer no instante que dou uma espiada,
até a risadinha entre eles é disfarçada. Troco de música pela décima sexta vez,
finjo checar algo importante no celular. Aumento o volume. Diminuo o volume.
Troco e destroco de faixa. Procuro novamente Bruno-Black. Não o encontro. Rodo
a academia, eu já quase a conheço inteira só nos últimos minutos. Encontro o grandão. Pergunto
terminei lá, e agora? E ele responde vem aqui, eu vou e ele fica em dúvida,
procura um aparelho, depois desiste e me coloca em outro e diz agora faz de
novo mais quatro de dez e eu faço, outra vez com aquele mesmo probleminha com o
peso. Aparece então na minha frente uma garota linda com roupa colada. Ela empina a buzanfa pra
cima, sobe a perna e desce. Ela realmente é linda, mas de repente o que mais me
chama atenção não é aquele corpo, e sim o tipo de olhar que o cara que segundos
antes a tinha cumprimentado como um bom amigo, começa a dar na direção dela.
Ele olha e tenta disfarçar, mas não consegue parar de olhar. Surge então um
outro, passa por ele e dá aquela levantada dupla de sobrancelhas. Os dois trocam
uma risadinha silenciosa e voltam aos seus exercícios. Em meio a isso eu
termino a minha tarefa. Pelo bem da humanidade e em solidariedade à menina,
livro-a do meu olhar em sua direção. Não ganho biscoitos por isso. Nunca mais volto a vê-la e nem a cor da
legging que usava eu lembro mais. Procuro o Bruno-Black. Outro aparelho, outra
indecisão quanto ao peso, outra vez eu me esforço. Dou um leve suspiro, tudo
bem, a culpa não é do instrutor por estar acostumado a velhos barrigudos e
caras gigantes frequentadores da Igreja do Sétimo Dia do Reino do Whey. Ele não
é obrigado a saber lidar com gente assim, finérrima. Troco de música. Noto mais
uma ou duas risadinhas. Praguejo por estar no território deles, não no meu. Bebo mais
água, e começo a gritar por dentro que porra tô fazendo aqui? Vou atrás do
Bruno-Black, ele diz que chega por hoje. Pergunto se posso andar na esteira,
porque preciso queimar toda a tonelada de açúcar correndo por minhas
veias de diabetes hiper-descontrolada. Ele me pergunta abismado mas tu não
queres ganhar massa? É aí que tenho a certeza que nem sequer escutou a parte
sobre eu ser diabético, que nem deve saber o que diabetes é, e que tudo o que
prestou atenção foi a parte sobre ganhar massa – que é a que ele está
condicionado a trabalhar. Subo as escadas. Ligo a esteira. Finjo que sei o que
estou fazendo da vida. Um, dois, três, quatro e cinco minutos. Pronto, já chega.
Desço as escadas e encontro com o Bruno-Black. Ele se despede e me passa o
número dele, diz pra eu mandar uma mensagem pedindo dicas de alimentação pra
ajudar no ganho de massa muscular. À noite, em casa, envio a mensagem. Até hoje
Bruno-Black nunca respondeu. Dois dias depois volto ao território inimigo.
Utilizo os mesmos aparelhos, porque são os únicos que aprendi a usar. Diminuo o
peso, mexo no celular, bebo mais água do que o normal – só pra disfarçar.
Assim como no outro dia, são três horas da tarde e comprovo que mesmo no
horário do Sol as pessoas conseguem lotar a academia. E eu que imaginei quanto
menos gente, melhor. Estão todos olhando. Subo as escadas, tento usar a
esteira, estão todas ocupadas. Não tenho saco para esperar, lá se vai minha
tentativa frustrada de fazer valer a pena todo o dinheiro que fiz na matrícula.
Vou embora dali, menos de 30 minutos desde que cheguei. Volto para casa, meus
braços não esticam, ainda doem pra desgraça e quase posso notá-los roxos. Vinte
e oito dias depois e toda minha família ainda acha que estou frequentando
aquele antro de esbeltez humana. Gasto o dinheiro do segundo mês de mensalidade com comida – frituras, colesterol e felicidade.
Felicidade – está aí uma expressão que não vi em nenhum daqueles rostos na
academia, privando-se de comerem isso ou aquilo outro, choramingando porque mais
um pedaço vai parar meu coração ou entupir minhas artérias. Tinha vinte e dois
anos nas costas e conclui que jamais serei esse tipo bastardo de ser humano, e
que o Senhor Deus me perdoasse a generalização e o preconceito, mas era a minha verdade – pois assim são certas generalizações e certos preconceitos. Vinte
e dois anos nas costas e não tinha constituição psicológica ou maturidade para
entrar, de novo, em território inimigo. Vinte e dois anos nas costas e durei
dois dias na academia.