"Os escritores são prostitutas - disse Stobbs -, os escritores são as prostitutas do universo".
BUKOWSKI, Charles. Numa Fria. / tradução de de Marcos Santarrita. - Porto Alegre: L&PM, 2013. p.19.
(O último)
Agora eu posso entender, dentro desta
casa vazia, o que todos os maus exemplos queriam dizer sobre o azar secular que
acompanha as “prostitutas do universo”. Compreendo, enfurnado nesses fins de
semanas desgastantes dentro do quarto saindo apenas para comprar comida
instantânea, refrigerante e porres secretos de uísque, o porquê todos os meus
ídolos foram abandonados por suas senhoras, o porquê fediam, o porquê viviam
como vagabundos e o porquê reclamavam da miséria.
“Todos
vocês, escritores, vivem chorando miséria”.
(p. 18)
(p. 18)
Um verdadeiro escritor – ou uma
verdadeira prostituta do universo – sabe que nasceu para fazer o que gosta e o
que precisa fazer, por mais que não o faça com frequência, por mais que não o
faça oficialmente, por mais que não o faça nunca. O sentido maior não está em
terminar um romance ou fazer dele um sucesso, não está em sentar as nádegas e
produzir, não está em participar dos ciclos literários, não está em ser
intelectual e refinado, muito menos em ser necessariamente miserável, não está
também em bater cabeça e finalmente progredir. O sentido maior está, na
verdade, em fazê-lo mesmo que brevemente e desfrutar de intensa epifania após o
último ponto. Porque em algum lugar do planeta, um tal Augusto Zé-Ninguém
certamente passou a vida inteira considerando-se escritor (vide prostituta),
porém morreu desconhecido com as palavras engavetadas e esquecidas. Esse tal
Augusto Zé-Ninguém não conheceu a fama, a glória ou o estrelato, ele não teve
reconhecimento nem em vida, tampouco em morte, mas foi uma prostituta até o fim
– e com um magnífico orgulho, seja lá o quê aos olhos do mundo ser uma vá
significar.
Justo por isso eu entendo o velho e
miserável Buk e o azarado Hank Moody; por isso me apaixonei pela vida
fracassada de Howard Phillips, o fim deplorável de Poe, as desventuras de
London ou as estradas e parágrafos intermináveis de Kerouac; por tanto admirava
o jovem e sepulcro Manoel Antônio, a existência prematura e todo seu talento
ofuscado pelas trágicas ocasiões da cruel vida. Compreendo, agora com terna e
pacífica sabedoria, o porquê de todas aquelas boas mulheres que estiveram com
eles partirem centenas de vezes, pulando fora para abandonar o relento navio.
Não é tão bonito e romântico quanto parece. Dói e o faz refletir no que você
poderia ter feito, o que nasceu para fazer e o que não acabou se tornando.
Nesta última estação, por uma
incontável vez, é a linda moça de belos cabelos quem está saltando da
embarcação – e com compreensível razão. Todas elas cansam, pois qualquer alma
necessita de perspectiva, e acordar todo dia como se não houvesse um amanhã, é,
para o tipo dela (o tipo maduro de pessoa, o tipo evoluidamente responsável e
coerente do futuro), um absurdo sem precedentes.
Nos próximos anos talvez seja a loira
pequena e admiravelmente bela quem pule fora do barco, porque estará caminhando
na vida e não poderá continuar com um vagabundo-covarde que implora gorjetas
para um passeio a céu aberto, que nunca a levou a novos ares ou que sempre a
amou na mesma cama desde que se conheceram. Talvez em dois anos, a negra dos
cabelos curtos, assim como a primeira, também abandone o navio pelas mesmas
razões – talvez sinta a mesma vergonha, o mesmo temor abissal da falta de
expectativas ou a secreta suposição de que esteja perdendo tempo e oportunidade
para o fiel e certo cavaleiro que poderia concedê-la melhor vida. É difícil
viver um dia de cada vez quando se está condicionado a ter planos para tudo, e
nós, prostitutas, nos contentamos com o aqui e o agora (aqui erroneamente me
enquadro, o faço mais pela necessidade prosaica do que pela consciência do ser,
pois bem sei que jamais escreveria ou publicaria coisa alguma em vida, tanto
por falta de talento, quanto por excesso de avisos deixados por uma antiga
amada).
Por isso Gabriela odiou-me tanto, por
isso Emília quebrou – simbolicamente - minha cara, por isso Taís não quis mais
saber da minha existência e Bianca inventou aos berros que eu não passava de um
broxa, sem graça, desinteressante e vagabundo, sempre que tinha a oportunidade
de mencionar meu nome. Por isso todas odeiam esses malditos escritores e
“escritores” que nunca de fato escrevem ou finalizaram coisa alguma, por isso
estão sempre os abandonando, não aguentando o trampo, a marra ou a falta de
compromisso para com a vida. Não suportam as piadas, não aguentam serem alvos
de palavras irônicas e bem arquitetadas. Não suportam a ausência do futuro, não
suportam as oportunidades perdidas com outros tantos rapazes promissores. Por
isso chamam-nos de vagabundos, imaturos e covardes – e por isso na afirmação
estão completamente certas. Por isso elas surtam enquanto os (as) desavisados
(as) romantizam as relações conosco, prostitutas, e fantasiam que as
recepcionaríamos com belas palavras a cada manhã despertada – porque não é bem
assim, não mesmo, não é porra nenhuma.
Por isso nós, prostitutas, levamos
sempre porrada, choramos e escrevemos vez ou outra – o que vale é apanhar e
gritar, com drama, com dor, com teatralidade, porque “gritamos quando nos
queimamos”. Por isso também não seremos e nem estamos sendo lembrados, por isso
voltaremos ao pó, à terra e ao esquecimento. Por isso a boa moça dos belos
cabelos está partindo esta estação – por Deus como eu a amei –, por isso semana
que vem será outra, e depois outra e mais outra até eu morrer carcomido numa
cama esquecida de hospital, sem legado, sem memória, sem entes queridos me
louvando. Bem dissera o velho Buk: palavras não como preciosidades, mas como
necessidades. E por isso vivemos delas para não enlouquecermos, por mais jovens
e promissores, por mais pseudo-escritores, por mais falsários ou por mais
infantilmente iludidos e apaixonados que sejamos; por mais preguiçosos, por
mais nada-produtivos ou por mais arrogantes e prepotentes; por mais que sejamos
O Nada, por mais que ninguém conheça nossos nomes, nossos arranjos, nossos
parágrafos imensos, nossos neologismos, nossas sutis rimas em prosa ou o
trabalho de nossas malditas-e-esporádicas-minúsculas-obras; por mais que não
dominemos os moldes ou não tenhamos todo o aparato literário, filosófico ou
psicológico para o cargo, por mais que não alcancemos o eu-universal ou que não
bebamos da genialidade de Machado, de Pessoa ou Drummond.
Sem fama, grana e futuro. Só a boa e
velha necessidade da escrita e a profissão cravada na alma.
Por isso as partidas, os erros, as
maldições proferidas e o passado ecoando.
Por isso todas as senhoras com
frequência nos abandonando.
Por isso sofremos, choramos e
escrevemos, por isso o azar secular, por isso a morte do amor.
E por isso nós, somente nós, as
prostitutas do universo.