21 de dezembro de 2016

As duas últimas primas (verdadeiramente) legais




Estou na fila das bebidas.
Eles todos estão pedindo drinks coloridos, misturas de álcool com coisas vermelhos e morango e iogurte e leite e frutinhas e uvas passas e azeitonas e vietcongs e mais coisas esquisitas com nomes bem elaborados e tropicais. De todos eles, eu só conheço a caipirinha. O cara atrás do balcão balança a cabeça e pergunta o que eu quero, o parceiro dele chega, dá uma sussurradinha no ouvido e eles pedem a minha identidade. Olho para os lados e vejo adolescentes de dezesseis anos bebendo livremente como se não houvesse amanhã e eu me pergunto Espera aí, eles são meus parentes? Eu nunca sequer os vi antes, eu quase poderia ser seu pai, mas estou aqui: confiscado pelos bem malhados e engomados fiscais de menores. Dou de ombros. Mostro a identidade. O cara, com aqueles braços imensos de baby-look apertadinho e tatuagem tribal e franjinha com gel caindo na testa me devolve o documento e pergunta de novo o que vou beber, inclino-me sobre o balcão e digo “que se foda”. Dou as costas e peço uma Coca-Cola Zero ao garçom. No meio do corredor topo com a minha avó, ela me diz as palavras de sempre, pergunta se eu já comi e se tem refrigerante pra mim. Ergo a mão, mostro a bebida e agradeço por não ter pedido a caipirinha, com certeza o mundinho de orgulho e amor dela por mim iria ruir, então que as coisas fossem como tivessem de ser.
Contorno a velha e volto ao meu lugar. Adolescentes de treze anos e dois metros de altura passam por mim – as garotas, parecem ter três. Sento na mesa, ao lado das duas únicas primas legais que conheço e que me restaram. Abro um sorriso na direção delas e tento pela décima terceira vez naquela noite puxar assunto, mas elas sutilmente me ignoram. Sutil e educadamente, é claro, elas são boas e discretas demais para aquilo. Então eu volto ao pensamento que me latejou a cabeça durante a noite inteira enquanto aqueles flashes de luz colorida piscam ao redor e um tio passa meio bêbado com um copo de whiskey ou um primo fanático por futebol bate no meu ombro e pergunta outra vez pelo time que há muito eu detesto porque há muito eu detesto futebol, mas eles não podem saber disso, porque ruiria todo o orgulho e amor que têm por mim. Queria uma dose de scotch, mas rolaria o mesmo problema com o orgulho e o amor e o falatório e toda aquela hipocrisia enquanto eles enchiam a cara com suas artérias cheias de gordura e preconceito e barrigas imensas e filhos fora do casamento. Apenas os bons, saudáveis e merecedores bebem scotch, Júnior. Pela décima quarta vez eu puxo assunto com minhas primas, faço outra brincadeirinha e novamente elas me ignoram – dão aquela risadinha discreta como se gostassem de mim, como se eu estivesse preso em um momento que passou, como se eu estivesse preso na infância enquanto brincávamos e enquanto eu dancei valsa com elas em seus quinze anos e enquanto elas ainda não viam em mim um escroto degenerado.
Mas agora os tempos mudaram e em meio a um gole longo e pesado de Coca-Cola Zero eu sei o porquê. Então tudo bem, então que tudo se foda. Se for pra ser assim, então que assim seja. Mantenha a reputação que agora te pertence: dou um longo suspiro e direciono o olhar às menininhas que nunca vi na vida e que não tenho certeza se de fato são minhas parentes. Há quanto tempo estive recluso de minha própria família? Foda-se. Eu olho. A primeira que passa por mim tem um rosto jovial, treze anos no máximo. Corpo de vinte. Olho a bundinha dela e sorrio. Diziam por aí que eu seria um professor molestador de menores, diziam por aí que eu era mais um naquele sádico saco de farinha fétido. Então tudo bem, então que eu o fosse. Que bundinha adorável. A segunda menina que passa tem duas bolas de basquete pitorescas no lugar dos peitos, quinze ou dezesseis no máximo. Já dá um belo caldo. Suspiro e prendo os meus olhos nos peitos dela com uma discrição tão fracassada quanto minhas tentativas de recuperar a relação com minhas duas últimas primas verdadeiramente legais. A garota das bolas de basquete passa, me encara, fica com vergonha e apressa os passos. Olho para trás e agora ela também olha para trás, então se reúne com as amigas e cochicha algo, visivelmente furiosa. Uma delas, dezessete no máximo, olha para mim com imensos olhos verdes e brilhantes, ela tem cabelos loiros e é uma belezinha, embora tão magricela e pequena e frágil quanto eu. Ela me olha dos pés à cabeça e abre uma gargalhada forçada, intencionalmente alta em meio ao pagodão que toca lá nos fundos do salão para que eu saiba que fala de mim, para que eu perceba que ela está usando de deboche como se eu não soubesse identificar um tão forçado e nada condizente.
Dou uma leve assentida e viro o pescoço.
Olho de volta para as primas. Tento pela décima quinta vez conversar sobre a situação política do país e o quanto isso vai afetar a educação e o meu rabo num futuro não tão distante assim e a loirinha aparece. Eu paro de falar. Estou assustado. Fodeu! Fodeu! Nunca provoque uma mulher histérica, principalmente se ela for uma mulher histérica de dezessete anos que acha que vai mudar o mundo. Certo. Comentário intencionalmente irônico. Exceto pela parte de mudar o mundo. Exceto pela parte de “nunca provoque uma mulher”, porque elas podem realmente foder com você, sua cabeça e sua reputação, principalmente a reputação – o ódio das minhas primas era uma consequência clara do quanto uma boa reputação estragada poderia por aí se espalhar e por aí convencer. Mas que se fodesse, certo? Reputação é tudo. Você precisa internalizar o que dizem a seu respeito, BoJack havia dito que “o sistema funciona”. A loirinha comenta algo para elas e as duas rebatem com um ou dois comentários discretos, que fazem a loirinha partir, porém sem antes me fuzilar com aqueles olhinhos verdes. Ela vai e eu olho para trás, vejo a bundinha magra balançando e mordo o lábio inferior, viro o pescoço e dou um gole na Coca-Cola.
- Mas acho que o Bolsonaro resolve, é a única solução que vai trazer decência a esse país indecente. – Digo com um ar despretensioso. Como se aquela merda não doesse na minha consciência. Mantenha o papel.
Mas que se fodesse, certo? Reputação é tudo.
Minhas primas sorriem, pedem licença e dizem que já voltam.
Pelo resto da noite, elas não voltam para a mesa.
Nunca voltaram.
Peço outros cinco copos de Coca-Cola ao garçom e puxo a camisa para fora da calça, enrolo as mangas acima dos cotovelos e desabotoo o botão que me espreme o pescoço. Respiro fundo. A essa altura, já estão todos dançando. Bêbados. Minhas duas últimas agradáveis primas já estão agora em outra mesa, com outros tios, outros primos e sendo discretamente educadas com gente que vale a pena. As meninas que eu não tenho muita certeza se são minhas parentes continuam passando e sinto seus olhares fulminantes sobre meus ombros, mas já não estou olhando, já fiz a minha parte: mantive minha reputação intacta. Outro gole na Coca. Queria mesmo era um Johnnie, mas apenas os bons tios e primos com artérias cheias de gordura e preconceito e barrigas imensas e filhos fora do casamento podiam beber, porque “isso daqui não é pra ti, você é o doentinho superprotegido da família, beba seu refrigerante”.
Então beleza.
Que se fodesse.
Volto à fila dos drinks que agora não está tão cheia assim. O cara atrás do balcão, com o braço que é três vezes o meu tamanho, o cabelo com franjinha caindo na testa, a tatuagem tribal e o nariz empinado me pede, com escárnio, outra vez a identidade. Dou de ombros. Entrego a ele de novo. Vai querer o quê?, ele pergunta. Um desses aí de morango, aponto com o dedo, mas sem álcool, por favor.
Ele faz sua dança gigolô com as mãos ao preparar a batida como se eu fosse uma de suas clientes adolescentes e alcoólatras de quatorze anos, mas tudo bem, aqueles caras estavam liberados pela santíssima permissão das meninas, eles sim podiam olhar com prazer e pedir números e saírem isentos ao fim da noite – tudo porque não haviam conhecido garotas histéricas para profanar seus nomes, nem primas verdadeiramente legais para perder a fé neless ou colegas de família para julgá-los ou amigos ou conhecidos ou quem quer que fosse para odiá-los. Cruzo os braços. Mentalmente, estou repetindo um mantra: Jengou Yange Rongo Jun. Significa “vai se foder, bartender bombadinho” em dialeto tibetano.  
Volto ao meu lugar. Dou uma sorvida na bebidinha de morango sem álcool.
Isso, meninas, isso sim é bebida de macho.
Dos escrotos.



9 de dezembro de 2016

É feriado lá fora



Você levanta da cama em uma tentativa autoritária de cumprir com o que planeja. Prende os cabelos lisos em um coque improvisado e joga o lençol para o lado, obrigando o corpo a assumir uma disposição que é quase impossível para o horário, obrigando o corpo a assumir uma disposição que os olhos não desejam. Põe uma das pernas para fora e penso ver sua reação quando toca a ponta do dedão na lajota fria, porque recolhe um pé em um reflexo rápido e contido, quase tentando esconder de mim o quão despreparado seu corpo está. Eu começo a rir e você, no fundo da alma, realmente tenta vestir uma carranca que não funciona às sete horas da manhã. A luz entra amena pelo balancinho e pelas frestas da janela de metal, juntamente com o clima meio frio da quarta-feira. Pelo pouco que me recordo da madrugada, garoou por volta das três e meia, o que é raro para essa época do ano. Talvez eu lembre disso porque olhei a hora no celular antes de virar e pegar no sono com o peito ofegante ou talvez fosse uma ilusão bordada em um sonho delirante qualquer.
Novamente você tenta: coloca a planta do pé cautelosamente sobre a lajota, experimenta o frio da manhã na planta dele, contrai o corpo, contrai o rosto e aperta a beirada da cama com as mãos de pele alva. Em seguida, passa a segunda perna e faz o mesmo com o outro pé, causando agora um calafrio que sobe por seu corpo e deixa arrepiados os pelinhos dos braços até os ombros, com poros abertos que faço questão de deslizar os dedos para sentir. Aí você se arrepia mais, embora agora tenha controlado os reflexos do toque. Eu pergunto por que já vai e você diz, categórica, que tem de voltar para casa.
Embora contrariado, imediatamente aconchego-me às suas costas, envolvendo-a com o braço direito pela cintura e encaixando o peito na altura do cóccix. Deito a cabeça em um travesseiro ao lado de sua coxa esquerda e ali emprego um beijo silencioso, desses que você não quer mais descolar a boca. Eu alguma vez disse que gosto do cheiro da tua pele? Devo ter dito, pois sempre estive dizendo o que penso sobre o seu corpo ou sobre sua existência como um todo, fosse neste exato momento, fosse no dia que nos vimos pela primeira vez.
Vem aí o embate supremo: perguntas e respostas sobre o porquê você precisa ir, o porquê da pressa, o porquê da ânsia por sair da minha cama. Antes que sequer tenha o ímpeto de levantar, eu a bombardeio de questionamentos e pergunto o que é preciso para fazê-la desistir da vã ideia de partir. O que faço pra que tu fiques? eu pergunto. Você sorri como se a proposta fosse absurda, você sorri como se também não desejasse a possibilidade. Aí tenta levantar na direção do banheiro, mas eu a impeço. Você me olha com um meio sorriso ora confuso, ora desafiador, ora excitado pela afronta, tenta sair de novo e mais uma vez eu a impeço. Na terceira tentativa você ri mais alto e balança a cabeça, perguntando se eu não a deixarei sair daqui hoje. Minha resposta é imediata, óbvia e direta. Você balbucia um “Bobo” e abaixa a cabeça, fechando os olhos para um inevitável bocejo. Puxo seu corpo de volta para a cama e a surpresa me aplaca quando apenas se limita a sorrir e a se deixar conduzir uma vez mais aos lençóis.
Eu tinha que voltar pra casa, você diz, hesitante, como alguém que não consegue inventar nada além de uma mentira fajuta para escapar de um forte, pecaminoso e tentador convite. Vi teus olhos de negros vales submarinos arquitetarem quaisquer argumentos sólidos para me convencer, mas teu corpo, tua boca e o modo como coçava o topo da cabeça te traíam – cada um magistralmente. Em tua clara e prolongada falta de resposta, encaixo teu corpo pelo meu, enrolando braços e mãos e pernas e suspiros. É feriado lá fora, eu digo ao dar de ombros. Então que se foda tudo, digo por fim e você ri como se eu fosse um louco transgressor de leis, como se eu fosse algo que de fato valesse a pena possuir nesse mundo.
“Será que os mortos se incomodarão com isso?”, você pergunta com ar de zombaria. Eu te questiono e te indago, prostrando o rosto sobre teus peitos e te olhando direto nas órbitas negras. “Acha mesmo que os mortos se incomodarão com o que fizemos ou com tudo que faremos agora?”. Que audácia. Que audácia deles nos observarem e que audácia deles nos espionarem. Que audácia deles o incômodo. Então eu digo que “os mortos não importam mais”. Você sorri. Falávamos ao pé da letra, nada de metáforas. Talvez esta seja uma das tantas razões por eu gostar do seu cheiro (e por consequência de você, por inteira): você entende isso, você sempre entende o que digo.
Você fica um pouco mais enroscada em tudo o que está sobre essa cama e desiste de partir. Aí passam-se setes horas, você permanece pelas oito e se enrosca pelas nove; às dez, pede para levantar e enrolamos tempo, suor e carícias, até que são onze e você pede por café quente. Eu faço café e voltamos pra cama.
Observo pela janela que não está mais garoando.
Aliás, está um calor desgraçado agora, mas ninguém se importa.
É feriado lá fora.
Ótimo que seja.       



2 de dezembro de 2016

É Novembro outra vez



Hoje é o dia da Super Lua, eles dizem.
Mas estou parado na calçada, são mais de cinco horas da tarde e o novo supermercado do bairro está diante de mim, do outro lado da rua, vermelho e belo e atrativo e impiedoso e imponente como um milenar dragão chinês. Ao lado dele há um canal: imundo e pastoso, deprimente e solitário. A água está suja e ele está fluindo, cuspindo dos imensos dutos tudo o que nas casas foi consumido, digerido e expelido. Na rua que segue o canal, há um conjunto habitacional com uma sequência de quatro ou cinco prédios, empilhados no solo como dominós prestes a serem empurrados por dedos gigantes. A faixada dos prédios não é algo tão admirável, nem suas laterais, nem seus fundos, pois as paredes estão consumidas pelo tempo, pela chuva, pelo vento, pelo calor intenso e pelo descaso administrativo-habitacional. Toalhas e camisas e bermudas e meias e cuecas e calcinhas balançam-se nas grades como velhas amantes dando um último adeus aos seus maridos que partem num pobre Titanic. No topo dos prédios ou presos às próprias laterais, centenas de antenas improvisadas de tv a cabo afloram como os braços de capins em uma relva esquecida. O cenário é dos mais desprezíveis, não em termos de repulsa, mas em termos de banalidade. Eis alguns elementos que estiveram ali por tempo demais e ninguém sequer reparou. Eis a banalidade esquecida e invisível que esconde o algo belo nisso, algo belo que igualmente é em extremo banal, despercebido e ignorado. Por detrás do canal e do conjunto habitacional, há um céu claro e sem nuvens que faz brilhar um Sol magnífico e ofuscante – bem mais do que o dragão vermelho imponente jamais ousaria ofuscar em sua mais ancestral existência.
A Lua vai estar gigantesca hoje, eles dizem, como nunca estará pelas próximas décadas.
Mas ninguém vê, ninguém verdadeiramente enxerga que o Sol está se pondo naquele ponto. O Sol está ali, todo santo dia se pondo naquele exato lugar, precisa posição, sem ângulos a mais, sem ângulos a menos – isso, é claro, até o próximo e inabalável terremoto de escala 8.0 que abalará eixo terrestre, intocáveis vidas e frágeis memórias. O Sol, todas as tardes límpidas e livres de chuvas, está sempre desempenhando o seu glorioso e vívido papel por detrás daquele canal e daqueles prédios. Sempre no mesmo horário. Sempre com o mesmo brilho. Sempre quente. Sempre fervoroso. Sempre fiel. Porém ninguém o nota, não daquele ângulo, pelo menos. Ninguém verdadeiramente tem centrado um par de olhos saudáveis naquela direção e notado quão magnífica e digna é a dantesca obra de tão virtuoso Febo Apolo. Eterno, repetitivo, diário, porém único, mesmo que capturado por uma fração de segundos na câmera fotográfica da memória.
Estou parado na calçada e lá fora todas eles dizem que é a Super Lua hoje, mas é o Sol quem está diante de mim. É possível pensar tanto em tão pouco tempo? É possível pensar tanto em meio ao tempo de um semáforo? Eu amo a noite, eu a beijo com lábios ternos e sinto nela a palpitação da minha alma, mas é ao Sol que venero, é Nele onde cada amor é refletido, é Nele que cada amor corre e sorri em meio a uma manhã de Domingo ou em meio a um copo de cerveja enquanto se põe atrás da silhueta dela em uma tarde no Ver-o-Peso.
É ao Sol que venero, é no Verão que algo aqui pulsa.
É agora que Ele me acolhe e me faz refletir: esse, derradeiramente esse, esse é seu mês mais intenso, quando ninguém está verdadeiramente notando, quando ninguém está verdadeira sentindo.
É novembro outra vez.
Meu particular Periélio.


22 de novembro de 2016

Ritmo



Eu levanto da cama com os pés descalços. São sete da manhã e ela está dormindo, com o corpo despido de roupas ou lençóis. Ela é dessas que não sente frio, tenho notado. Pela segunda vez dispensou o lençol sempre que ofereço, embora eventualmente acabe acordando aprumada nele e sempre me pede para dormir do lado do ventilador. Ela detesta o lado da parede. Vou ao banheiro e acendo a luz amarelada que sutilmente ilumina o quarto. Tiro a água do joelho. Meu nariz tá meio entupido, dormir de peito pra cima é complicado, mas vale a pena. Ela dormiu aninhada ao meu corpo e eu ao dela. É a nossa segunda vez nessa cama, é a segunda vez que toco esse corpo. Tem sido maravilhosamente esquisito desbravar um novo território, permitir-me farejar um novo aroma e sentir na ponta da língua um novo sabor, um novo suor e um novo arfar. Tem sido maravilhosamente esquisito parar aqui – na minha própria cama – com o ritmo natural da vida, do acaso e do permitir-se. Tem sido maravilhosamente esquisito e novo-de-novo ouvir a risada de alguém, depois o abraço, as centenas de beijos e finalmente o calor da madrugada – exatamente nessa tão respeitosa e serena ordem. Tem sido maravilhosamente esquisito sentir a palpitação da ansiedade, a surpresa do desejo e o guiar-se calmamente instintivo. É quase louvável vê-la deitada ali, tão calma e tão linda, depois de um tempo suficientemente necessário, sem a correria das relações breves, sem a insana necessidade de aplacar dores e vãos desejos. É quase celestial ter conhecido primeiro seus hábitos e velados fetiches antes de tocá-la; é quase celestial já conhecer o ritmo de sua risada, o ritmo de seu beijo e o livro favorito antes de deitá-la nessa cama. Foi celestial, aliás, não tê-la deitado nesta cama de forma banal, passageira e brutal, porque tornou louvável o ato de conhecer seus detalhes e suas minúcias, embora voltemos amanhã, ambos, para nossas vidas sem a promessa de dias de união ou sinas entrelaçadas. Tem sido maravilhosamente esquisito a adaptação a este novo corpo, quase tão pequeno como o meu, porém encaixável, suave e pecaminoso, extremamente ritmado e vigoroso, nunca cansativo e jamais repetitivo. Eu volto do banheiro com todas essas palavras na cabeça, com a pequena e crescente ideia de que vou escrever sobre isso, mas não agora, não amanhã. Talvez semana que vem, quando eu tiver descoberto outro detalhe de seu corpo, outra vontade de seu gemido ou necessidade de mãos, pernas, costas ou ombros. Talvez eu escreva sobre isso o quanto antes, mas consigo guardar estas palavras – por sorte ela aparentemente não atentou para o que com as palavras faço ou onde elas são expostas ao mundo; por sorte eu não a conquistei com meias promessas e falsa galanteria; por sorte ela não vai saber que me inspirou e veio parar em meio as linhas de uma vã e passageira prosa.
Que bom que tudo tem estado num ritmo natural – seja com o corpo dela, seja com o tempo, seja com a minha paz.  



15 de novembro de 2016

Os detalhes te levam ao Inferno



Detalhes.
Marcelo era apegado aos detalhes.
Ele sempre adorou sentar na cozinha da avó durante a infância, enquanto a dona Jaílma fazia seu famoso bolo de laranja. Bolos são simples. Bolos de laranja são simples. O problema é que não são todas as pessoas que nascem com a aptidão de fazer coisas simples. A dona Jaílma, avó do Marcelo, caso tivesse nascido homem e em Cuba, certamente seria um dos braços direitos de Fidel. Dona Jaílma, avó do Marcelo, caso tivesse nascido homem exatamente onde nasceu, certamente seria um dos braços direitos do golpe de 64. Mas dona Jaílma, avó de Marcelo, nasceu mulher em uma época e em um mundo difícil para ser mulher e ser ditadora militar ao mesmo tempo, por isso ela só ditava mesmo era na cozinha em dias comemorativos, como no aniversário de Marcelo, quando sempre havia bolo de laranja.
Dona Jaílma era rainha naquele território e Marcelo era o único que podia permanecer nele sem ouvir gritos ou ser expulso com palavrões naquela voz rouca e arranhada de tantos anos de tabaco. Esse era um detalhe. Era uma coisa simples da qual todos já estavam acostumados: às seis horas da tarde, todo sagrado dia, quando a dona Jaílma ia lá pro fundo do quintal fumar seu tabaco que ela sempre dizia não fumar para ela, mas para outros. Marcelo só viria a entender o sentido do “fumar para outros” muitos anos depois, quando suas noções acerca de Deus fossem extrapoladas pela presença de outras entidades. Por enquanto, àquela altura da vida, Marcelo só gostava do som metálico que fazia a voz da avó quando expulsava e ralhava todo mundo que se aproximasse, porque fazer bolo de laranja, especialmente no aniversário do único neto, era para a dona Jaílma um ritual sagrado.
Como fumar o tabaco todo fim de tarde.   
Os primeiros sinais de que Marcelo adorava detalhes surgiram justamente com o ato de observar cada ingrediente do bolo de laranja. Marcelo nunca aprendeu a fazer um bolo de laranja, nunca nem sequer desejou fazer um bolo de laranja, porque só havia uma única pessoa na face da Terra capaz de fazer bolo de laranja que valesse a pena ser comido e apreciado com o paladar. Dona Jaílma era essa pessoa e era a única a lidar com os detalhes casuais de um bolo de laranja. Ela não tinha receitas e sempre que alguém perguntava quais as medidas que faltavam acrescentar para fazer o bolo de laranja, dona Jaílma respondia:
- Três ou quatro daquelas colheres grandes de trigo e tá bom, minha filha. Tu dás uma olhada, mas é por aí.
E fim de papo.
O sal do cozido era a mesma coisa. Dona Jaílma pegava com a ponta dos dedos e salpicava. Pronto. Ficava um baita cozido perfeito. Ela tinha o que os cozinheiros caseiros e profissionais chamam de tato. Dona Jaílma tinha tato para pequenos detalhes.
Assim como Marcelo.
Marcelo era um apreciador nato de detalhes.
Nesse instante, agora adulto, Marcelo observa um detalhe quase imperceptível: Rossana tem uma pintinha meio rosada atrás do tornozelo. É um sinal, ele quase tem certeza, porque já havia notado isso antes, há muito tempo. Era uma pintinha discreta, pouco menor que a unha de um dedo mindinho adulto. Era disforme e ondulada, como uma ameba prestes a fagocitar um corpo estranho. Ele deslizou a ponta do dedo indicador sobre a mancha na pele, só para se certificar de que era um sinal e não algum tipo de micose ou anomalia epidérmica.
Após se certificar do veredicto, Marcelo acariciou aqueles pés de pele tão clara e lisa, porém não se ateve muito àquela região no intuito de não acordá-la logo, pois planejava encontrar mais detalhes que na noite anterior não fora capaz de descobrir.  Por isso utilizou a ponta dos dedos ao longo da perna dela, enquanto subia pelas panturrilhas levemente torneadas. Alguns detalhes poderiam dizer muito sobre as pessoas, mas os detalhes de Rossana diziam tão pouco a Marcelo que o máximo que pôde inferir, a respeito da vida pregressa dela, era que não estivera enfiada em muitas aventuras ou situações de risco. Nem tampouco parecia o tipo desastrada de garota. Não havia cicatrizes em sua perna, nenhuma marca sequer da infância, em nenhuma delas. O fato de ter vivido confinada em um prédio de classe média alta não justificava a falta de correrias, pulos ou travessuras. Porém descobriu outras pintinhas, em ambas as pernas, e na região das coxas elas pareciam muito mais distribuídas e existentes. A pele clara fazia com que elas não fossem negras, mas um pouco mais claras, algumas marrons, quase transparentes, um pouco parecidas com a manchinha do tornozelo, só que em estágio menos avançado de opacidade.
Foi durante a noite anterior que descobriu, com grande esforço e merecida conquista, as pintinhas que salpicavam-na os grandes lábios aqui e ali, como confetes em cima de um bolo de laranja com recheio de chocolate. Subindo um pouco mais acima da cintura, Rossana era pintada por detalhes em volta do umbigo e ao longo das costelas, três na direita e duas na esquerda. Mas dessa vez, Marcelo prendeu-se no formato que o corpo dela fazia naquela posição, adormecida de lado na cama com as curvas ora veladas pelo lençol, ora desnudas para a manhã clara de outono. Ele brincou com os dedos pelas sinuosas colinas que formavam seus quadris e cintura, descendo quase em queda livre pela depressão que ali havia para novamente subir pelas costelas, passando pelas pintas que havia descoberto e subindo pela lateral do seio esquerdo, onde ela era enfeitada por uma constelação inteira de sardinhas quase tão transparentes quanto aquela rosada do tornozelo. Marcelo deitou os lábios ali, entre os seios dela, local que guardava certo cheiro de suor, certo cheiro de pele, carne e intensidade.
As sardas subiam pelos ombros e misturavam-se aos sinais do pescoço, quase tomando-a o rosto. Marcelo também gostava do pescoço de Rossana: era bem desenhado, esguio e sempre chamativo para um beijo ou outro. Afastou dali os cabelos ruivos para que pudesse beijá-la melhor, e assim o fez, dando mordiscadas na pele bem próximo a orelha, onde passou a mordê-la na pontinha e levemente a mastigar como se fosse a última goma de mascar do planeta. A mistura de sensações ali era como um mar de cores psicodélicas: havia perfume, havia o sabor da pele, havia o sabor do suor seco, havia o sabor do perfume misturado ao da pele e havia a textura dos poros e o roçar dos pelinhos.  
Foi nesse momento que a garota começou a despertar, abrindo os olhos com um sorrisinho meio atordoado, finalmente compreendendo o que se passava. Ela esticou as pernas e dobrou os dedos dos pés, quase espreguiçando-se como uma gata elegante e manhosa.
- Bom dia. – Sussurrou-lhe Marcelo.
- Bom dia. – Ela continuou com o sorriso atordoado que logo transformou-se em algo próximo ao incômodo. – Oh, meu Deus. Que horas são? – E procurou o celular por entre os travesseiros.   
- Qualquer hora, por quê?
- Eu preciso ir. – E levantou-se num salto.
Marcelo impediu colocando a mão cauteloso sobre o peito dela.
- Eu tenho que ir embora, agora.
- Ei, qual é a pressa?
- Você sabe. – E arrumou o cabelo ruivo em um rabo de cavalo improvisado. – Meu Deus, eu tenho que ir, porra.
- Meu Deus, você é linda. – Caçoou.
- Para de brincadeira, cara. É sério. – E tirou a mão que estava em seu peito e saltou da cama, dessa vez Marcelo não a impediu.
Ela procurou o que quer que estivesse procurando pela cama, não encontrou e começou as buscas pelo chão. Primeiro, encontrou a calcinha e a vestiu. Depois, o celular.
- Puta merda, são dez da manhã.
- Cê tinha compromisso?
- Tu é meio retardado? – Perambulava em círculos pelo quarto, procurando o resto da roupa.
- Talvez. O que que foi?
- E se a Lívia chegar?
- A Lívia tá viajando.
- Tem certeza?
- Ubum.
- Se qualquer outra pessoa chegar?
- Ninguém vai chegar.
- Tem certeza?
- Uhum.
- Para de agir como se tudo fosse normal.
- Tudo parecia normal ontem à noite.
- Mas não é, Marcelo. A Lívia é minha amiga, isso não foi justo com ela.
- A vida nunca é justa.
- Safado.
Marcelo deu de ombros. Ela já tinha encontrado as calças quando ele a puxou pelo braço e a fez se sentar em seu colo.
- Relaxa, garota.
- Vai se foder. Eu não devia ter te dado ouvidos.
- Você deu mais do que ouvidos ontem à noite.
- Ora, vai se foder! – E deu um tabefe no rosto de Marcelo.
Ele a apertou pela cintura e mordeu o queixo dela. Rossana nem sequer protestou.
- Isso não tá certo, eu não devia ter feito isso. A Lívia é minha amiga.
- Você já disse isso.
- Ah, meu Deus, Marcelo. O que a gente fez?
- Sexo. – Ele a beijou rapidamente na boca. Rossana não pareceu incomodada de devolver.
- Ah, meu Deus.
- Sim, você também chamou muito por ele ontem.
- Vai se foder, Marcelo. – Outro tabefe e outro beijo.
Rossana tentou inúmeras vezes fugir dos braços de Marcelo, mas quanto mais as mãos dele a prendiam com pulsos fortes pela cintura, pelas pernas ou pelas costas, menos Rossana tinha vontade de sair. Parecia tentar fugir apenas por um senso longínquo de moral e ética.
As mãos de Marcelo subiram pelas costas da garota, apertou-a com dedos firmes e aplacou-a a nuca, embrenhando os dedos por entre os cabelos naturalmente alaranjados e soltando o rabo de cavalo que os fizeram cair pelos ombros. Marcelo cravou os lábios no ombro direito dela e chupou o suficiente para deixar uma marca. Ela reclamou, porém mais pareceu um gemido do que um protesto.
- Nós vamos pro Inferno, Marcelo. – Ela riu entre um arfar e outro.
- Vamos sim, ah, nós vamos.
Rossana inclinou o pescoço para trás e Marcelo o beijou, afundando o rosto como um vampiro esfomeado.  As mãos desceram até as pernas dela e afastaram a calcinha. A garota sentou para confirmar seu ticket de ida.
- Porra, que delícia.
- Cala a boca. – Ela ordenou, arranhando as costas dele.
- Cacete, tá maluca?
- Tamo no Inferno, porra. – Deu de ombros enquanto pulava no pau duro dele.
Àquela altura a ruiva já tinha os olhos fechados, para quem parecia se preocupar com a presença da amiga ou a condição de pós-morte, estava lubrificada demais. Marcelo apenas guiou o movimento dela com as mãos encaixadas na cintura, vez ou outra levantando-a e descendo-a com mais força por seu pau enquanto ela gemia e o mandava calar a porra da boca sempre que dizia uma coisa ou outra.
Selaram com uma rapidinha, alguns “cala a boca”, tabefes na bunda, na cara e gemidos o roteiro de viagem para o Inferno. Marcelo gozou fora, nas coxas dela, embora ele quisesse mesmo era gozar dentro ou, no mínimo, naqueles pelinhos alaranjados que cresciam na virilha.   
Eram mais de onze da manhã quando Rossana saiu do banheiro e vestiu as roupas. Os cabelos molhados, soltos e bagunçados.
Elas sempre saem de cabelo lavado no dia seguinte de sua casa.  
- Quer comer alguma coisa?
- Nem se eu quisesse, tenho é que dar logo o fora daqui.
- Já tivemos essa conversa antes. – Marcelo sorriu.
- Ah, vai sonhando. – Mostrou o dedo do meio. – Vê se lava esses lençóis e varre o quarto, limpa tudo, cara.
- Pra quê isso?
- Ela pode encontrar qualquer coisa por aqui. Até cabelo. Mulher é foda pra essas coisas, Marcelo.  
- A Lívia nem vai notar.
- Eu conheço ela, vai sim. Por favor, só não vacila. Ok? – Deu um beijo de despedida nele e foi embora.
Para quem apreciava detalhes, Marcelo sentiu-se um bobo por não pensar o óbvio.
Pela manhã, ele varreu todo o quarto e até usou o aspirador de pó que havia comprado por capricho na Polishop e que fora usado duas ou três vezes. Limpou o recipiente que havia dentro da máquina e despejou tudo no lixo. Colocou todos os panos da cama na máquina juntamente com as roupas que havia usado.
Pela tarde, Rossana enviou uma mensagem: “Faz o que eu te disse e não dá mancada, por favor. Eu gostei de ontem e como acordei hoje, bjss! (apaga essa mensagem)”. Marcelo sorriu ao lembrar de cada detalhe da garota e ao se certificar de que nada incriminador havia ficado pelo quarto.
Apagou a mensagem.
Pela noite, Lívia ligou para ele:
- Eles retiveram os documentos – ela disse, visivelmente cansada – e não pude voltar hoje à tarde. Consegui passagem para amanhã de manhã, tudo bem?
- Tudo bem, amor.
- Te vejo amanhã, desculpa atrasar tudo. Te amo!
- Também te amo.
Rossana e ele trocaram mensagens. Ela já não parecia tão temerosa assim pela condenação ao Inferno. Ele perguntou a ela qual o perfume usava, porque imediatamente lembrou do corpo da garota, lembrou a próxima vez em que se veriam, lembrou da manchinha atrás do tornozelo e, consequentemente, lembrou de como detalhes eram importantes.
Lembrou-se da dona Jaílma e o famigerado bolo de laranja. Detalhes.
- Qual perfume você usa? – Ele perguntou.
- O quê? Por quê?
- Só me diz.
- Aquele verde que vende na farmácia.
- Porra, na farmácia?
- É, por quê?
- Por nada.
Na mesma noite, Marcelo foi à farmácia e encontrou o perfume verde, o destampou para se certificar e comprou-o no débito automático.
No dia seguinte, quando Lívia voltasse de viagem, ela perguntaria que perfume era aquele. Marcelo responderia que saiu de casa para o trabalho e esquecera de passar perfume, então fora à farmácia para comprar o primeiro que encontrasse e o salvasse do perrengue envolvendo fedor e suor. Lívia acreditaria. Isso facilitaria as coisas. Ela jamais julgaria que o perfume na roupa dele ou nos lençóis seria de sua amiga, mas sim do novo perfume estranho que Marcelo andava usando.
Detalhes.
Marcelo era apegado aos detalhes, desde a infância analisando os ingredientes do bolo de laranja da dona Jaílma, até a idade atual, enquanto ansiava por ver mais uma vez aquela manchinha rosada no tornozelo de Rossana.
Detalhes: “O Diabo está nos detalhes”, era o que as pessoas diziam.
Marcelo sabia disso. Marcelo sabia também que são os detalhes que te levam ao Inferno.
Ele adorava ir ao Inferno.



8 de novembro de 2016

Totalmente acordado



A madrugada gelava a ponta dos meus dedos quando os recolhi um pouco mais acima na cama, dobrando os joelhos. De onde eu estava, metade do rosto dela era ofuscado pela luz da lâmpada no teto, mas ainda conseguia observar as maçãs do rosto salientadas por seu sorriso. Os longos cabelos caíam quase que inteiramente sobre mim, onde eu me escondia vez ou outra como uma criança brincalhona.
Aí ela sorria e eu também.
O frio da madrugada parecia espetar fundo na pele, seus braços e seus ombros despidos tinham os poros abertos e os pelinhos eriçados. Tá muito frio, eu dizia. Eu sei, deixa estar, ela respondia. As mãos dela começaram a tocar o meu rosto, roçando as negras unhas pelas minhas bochechas. Não ousei fechar os olhos, não ainda. Eu tinha muito a ver, eu tinha uma madrugada gélida inteira para descobrir o amoroso carinho da canceriana que ousou focar os olhos em mim quando todos os meus espelhos andavam quebrados. Por isso não fechei os olhos, não, não ainda. Não se permita fazê-lo, não ainda, não agora. Você tem todo o tempo do mundo por uma madrugada inteira. Ela inclinou a cabeça e os cabelos enrolados caíram ao redor de nossos rostos como uma serena e silenciosa cachoeira, protegendo-nos do que quer que estivesse nos aguardando lá fora – as obrigações matinais de segunda-feira, os gráficos dela para uma apresentação, suas tabelas infinitas a serem interpretadas, o novo emprego nos esperando como uma agradável armadilha de animal com dentes afiados, os olhares repreensivos da minha analista ou os remédios antes de dormir. O que quer que estivesse lá fora nos esperando, agora não importava mais.
Ela dobrou-se sobre mim, alcançando minha testa e empregando um beijo meio perdido, meio abobalhado. O forte hálito de cerveja aqueceu minha pele e ergui as mãos para segurá-la o rosto ao lado das orelhas. Ainda estava um pouco bêbada, não só o cheiro misturado ao seu perfume denunciava isso, como também o balançar meio tonto ou o modo como não conseguia manter-se parada no próprio eixo. Sob minha nuca, suas pernas estavam dobradas servindo como travesseiro natural ao meu relento. Dobrou-se um pouco mais, agora pareando os olhos escuros diante dos meus. Sob a cachoeira, ela sussurrou-me um dorme agora e eu só fui capaz de responder ainda não, não ainda. Você parece meio cansado, sabia?, disse ela, e eu você pareceu meio bêbada, sabia? Fez uma careta desastrosamente agressiva e finalizou a ameaça com outro beijo em minha testa, comprovando por fim o latente traço canceriano que eu começava a desconfiar ser verdadeiro. Há quanto tempo não dorme?, perguntou ela, desde umas sete horas, respondi eu. Não, ela suspirou, há quanto tempo não dorme de verdade?, e eu prontamente tem uns três meses. E ela prontamente dobrou-se mais, a um ponto próximo da completa fusão, tornando o mundo quase completamente negro – porém não o negro sombrio, não aquele habitual de nossos dias passados que ousavam pairar sobre nossas vidas. Não, não esse negro. Era o negro silencioso, o negro pacífico, o negro de quando se fecha os olhos após um longo dia de uma centena de olhares debochados ou pedras atiradas.
O negro dos cabelos dela – ela, seus cabelos, suas maçãs, seus olhos pequenos e o típico sotaque de onde o Caeté triunfa imponente. Aquele negro que aplacou-me os olhos, que fez-me respirar mais devagar por um minuto inteiro. Seus braços envolveram o meu corpo, a ponta dos dedos deslizou por meu tórax e as unhas subiram sapateando pelos braços, pelos ombros e finalmente voltaram ao meu rosto. Aí ela repousou as mãos sobre meus olhos como lençóis para dormir à noite. Dorme agora, ela disse suavemente com o hálito de cerveja. Dorme, insistiu. Por fim não resisti: fechei os olhos, envolto pela cachoeira que ao fundo de meu ouvido caía num estrondoso e pacífico silêncio. Fechei os olhos sob seu perfume e seu hálito, respirando fundo e me acalmando. Fechei os olhos sob seu sotaque, sob a noturna e passageira presença de seus lábios e do frio de seu corpo que reciprocamente buscou o calor do meu.
Naquela noite, somente naquela noite, eu pude finalmente dormir após uma imensurável eternidade que há muito me afogava. Naquela noite, somente naquela noite, eu deitava minha cabeça para finalmente dormir após tudo o que meus olhos viram.
Eu finalmente deitava e dormia em paz – talvez por uma única noite, talvez por uma ocasional visita.
Eu finalmente deitava e dormia em paz – já não estava mais totalmente acordado.


  

12 de outubro de 2016

Lobos uivam para uma lua nem aí



Eu que sempre serei arruído como Brás foi.
Eu que sempre me considerarei à margem, andando a passos contados e lentos o sobrado de um precipício ou as bordas de um poço. Eu que sempre afogarei no meu próprio reflexo em palavras vagais, sujas e desprezíveis, mesmo quando sei que aquilo não sou eu, não no íntimo, não no palpitar mais profundo. Eu que o farei por um estranho excesso não de humildade, mas talvez de modéstia – não a falsa, apenas modéstia. Direi que minha mente é torpe e lenta, quando na verdade sei que ela vaga a incontáveis milhas por segundo, se é que a ciência permite essa relação. Direi que o monstro que aqui cativo está sempre à solta, descontrolado, desacorrentado, faminto e sedento por destruir o que quer que se aproxime, quando na mais íntima e sincera consciência, sei que o monstro está bem preso, solto apenas em temporadas de desapego e traição. Eu que o farei na ausência de pretendentes, exatamente como o Universo conspira para ser – pois só assim, só assim, na solidão e na carência, há realmente algum tipo de paz.
Direi que sou sujo, direi que sou canalha, embora eu saiba, bem no fundo, que isso é apenas o que querem de mim, que é o mais aceitável e o mais plausível pelo estilo de vida que levo, os tipos de linhas que escrevo, os heróis que venero ou os livros que leio. Certa vez uma distante, longínqua e passada admiradora odiou-me ao saber que eu, em meio a palavras tão bem articuladas já naquela época, pouco sabia a respeito da verdadeira artimanha entre corpos, amores e vivências. Ela me odiou por eu não corresponder às linhas e pela verdade ser muito mais sem graça do que a mentira que ela tanto quis acreditar. Odiou-me não por eu mentir, mas por ter caído no engano que suas próprias expectativas acerca de mim a seduziram. Mas eu cresci, querida. Hoje tornei-me o que você queria, embora nem sequer lembres de mim, embora nem eu mesmo consiga enxergar qual a sedução nisso.
Não há.
Pois eu já venci o embate de saber quem sou, já descobri a resposta: sou, para cada um, o que quiserem que eu seja. Pois como pisciano desgraçado, volúvel e idiota, dobrar-me-ei aos pés da primeira que me cativar e por ela farei tudo. Tudo. Doar-me-ei sem o menor pudor e meu coração entregarei de novo, de novo, de novo e de novo e quantas vezes ele puder ser desgastado, açoitado e molestado, porém devolvido para a próxima pisada. E serei de novo fiel – gritarei ao mundo sem vergonha, sem desleixos, sem o menor escrúpulo. Odiarei e criarei guerras. Assumirei lados que nunca ousaria assumir e farei inimigos pelo bel prazer da satisfação companheira. Serei fiel diante de meus próprios erros: como sempre e desde o início, direi o que sou, perdido, melancólico, viciado pela dor e fissurado no triplo carpado suicida. Pois eu vou fundo, vou fundo apenas se, primeiramente, me permitirem ir. Pois sem permissão eu não vou, sem permissão eu não me apego, sem permissão eu não amo. Não qualquer uma, não assim com grande frequência, não como as vãs crianças desta geração insistem tão rapidamente amar, não de mês em mês ou de seis em seis meses – de cinco em cinco anos já é um ótimo prazo, como bem tem sido e como bem há de ser, que continue assim. Serei fiel ao dizer o que sou desde o início, serei fiel por cada aviso prévio proferido, embora todas elas detestem o “eu te avisei” quando os fins trágicos se anunciam. Serei fiel sobretudo na fidelidade (e que todos ignorem as redundâncias): quando digo que, não, eu não a trocaria por outra, mesmo nas temporadas de cinzas, mesmo nas épocas de quarentena, é porque jamais trocaria. Pois eu nunca troquei, pois eu nunca nem sequer segui ao chamado da tentação, embora ele estivesse ali, latejando e me chamando como uma Nereida maldita.
Serei eu afugentado para sempre com os mesmos dilemas e as mesmas substituições. Eu não sou perfeito, talvez me falte um punhado de músculos, centímetros, clube de futebol para me fascinar ou um violão para tocar. Talvez, para a perfeição, falte-me a manha de um bom macho alfa com a coragem para impedi-las de sair, para impedi-las de vestir certa roupa, para impedi-las de passar um batom vermelho e, sobretudo, impedi-las de existir e de conhecer, lá fora, o próximo rapaz a me substituir. O problema é que eu sempre permito, de um jeito ou de outro, embora acabe surtando com o resultado ao fim do processo. Acabo por não ser o macho alfa tão perfeito e desejado que elas tanto dizem odiar, porém terminam sempre a buscar. Estou sempre idiotamente permitindo, sempre deixando que vivam, embora digam que nunca permiti, embora culpem-me por prender, quando na verdade deixei janelas e portas abertas para que partissem ou para que decidissem voar. E elas sempre voam.
Então fico aqui com esses textos. Da última tão gloriosa, inesquecível e nostálgica vez (a vez que não causou dor, apenas desejos de retorno e sonhos utópicos), espalhei aos ventos palavras que talvez nunca tenham de fato alcançado sua dona. “Outro texto perdido de amor” foi como chamei todas aquelas palavras destinadas a ela. Talvez ela tenha lido, talvez não. Muito provavelmente julgou que para outra eram as palavras que por anos a dediquei. Não importa. Hoje tudo não passa de memórias e agradáveis saudades. Foi bom e prazeroso o exercício da dedicação, mesmo muitos taxando-me de covarde e imbecil.
Foi bom e prazeroso ser um covarde imbecil.
Se todas essas palavras alcançaram seus objetivos, no passado, no presente ou nas areias incertas do futuro, isso eu jamais saberei.
Talvez tenham encontrado suas destinatárias, talvez tenham se perdido.
É como alguém disse uma vez: lobos uivam para uma lua nem aí.



7 de setembro de 2016

Máfia Branca ataca de novo



Subi a Mundurucus.
Perdi a conta de quantas vezes eu havia subido a Mundurucus alguns anos antes, quando esvoaçantes cabelos castanhos por ali me chamavam. Agora não havia cabelos castanhos, nem negros, nem loiros, ruivos ou azulados – estas palavras sequer são a respeito deles. Não havia cabelos, na verdade. Havia meus passos, havia minha respiração quase ofegante e a total consciência dos meus atos ao não trazer qualquer companhia comigo, porque a presença de qualquer outra pessoa traria consigo a responsável necessidade de não ter um progressivo ataque de pânico ou de ansiedade. Aliás, onde estão os meus óculos? Tudo andava meio embaçado – literalmente, sem quaisquer significados conotativos. A Máfia Branca atacava de novo: as palavras “rins”, “alteração” e “três meses” erguiam pernas e braços diante de mim como dançarinas – dançarinas do Diabo, se bem entenderes a referência. A maldita Máfia Branca atacava de novo, trazendo-me notícias das quais eu não andava muito disposto a ter conhecimento. Aí eu paro na esquina da Mundurucus e Serzedelo, o semáforo está vermelho. Respiro fundo. O que eu faço agora? Corro para anunciar a notícia, abraço feito um maricas o travesseiro antes de dormir ou sento e simplesmente começo a gargalhar? Gargalhar. É o que quase estou fazendo – e tenho feito muito ultimamente: rindo descontroladamente diante de todos, no meio da rua, dentro do ônibus, sentado em uma praça pública ou bebendo aquela cerveja quente e odiosa no fim da noite enquanto todos vão embora da festa. Eu estou rindo. Rindo gloriosamente desesperado. Rindo. Rind. Rin. Rins, alteração e 3 meses não soam muito bem em uma mesma frase. Não soam muito bem em uma mesma frase vinda em sua direção, lançada como uma bomba de merda no ventilador.
Continuo a subir a Mundurucus e sinto saudades de sete anos atrás, quando eu fazia o percurso com outro propósito e com a certeza de uma vida inteira pela frente. Mas agora lembranças estavam enterradas, casas estavam desocupadas, quartos eram habitados por estranhos, jardins não testemunhavam virgindades perdidas e nem o fast food da esquina possuía o mesmo significado, porque tudo isso está morto tanto quanto eu... Ei. Ironia fresquinha. Pela primeira vez percebo que há um hospital na Mundurucus. Na verdade, um Centro. Monteiro Leite. Hemodiálise. Rins. Alteração e 3 meses. É dali para baixo: o que começava com algumas pílulas agora levava para o fundo do poço que sempre o estivera chamando, embora você nunca tenha se permitido pular. Agora que pula, tudo vem à tona – as voltas do Universo, o Karma por talvez ser comunista na vida passada ou simplesmente a efetivação da lei de Causa e Efeito.
Uma bomba no ventilador.
Paro diante do Centro e começo a rir. Puta merda, isso é sério? Você realmente sempre esteve aí ou não passa de um infeliz, sádico e genial deboche? Talvez seja essa a feliz vontade do destino, uma vez mais sendo o bom e velho destino.
Continuo a subir a Mundurucus com um sorriso nos lábios – eles estão secos, meu peito ofegante e antes fosse pelo cansaço físico.
Estou rindo e odiando a Máfia Branca – Máfia que me persegue desde a infância, Máfia que eu deveria manter por perto, ao invés de fugir por tantos anos. A Máfia Branca diz que está aqui para ajudá-lo a melhorar, diz que se importa e que pretende salvá-lo de si mesmo. É aqui que discordo: arauto da tragédia, fajuto Tirésias. Você está aqui para anunciar as notícias ruins, você está aqui para anunciar notícias ruins que nunca irônica ou verdadeiramente se efetivam antes de seus discursos polidos, exames precisos, diagnósticos dramáticos ou soluções (nada) empolgantes serem instituídos.
Maldita Máfia Branca, antes de pisar ali, eu juro que tudo andava bem, tudo andava nos conformes.
Eu preferia o estado anterior, eu desejava não saber até o preciso momento crítico e derradeiro – esse, aliás, sempre fora o plano.
Afinal, é como dizem: ignorância pode ser privilégio.



19 de agosto de 2016

Sapatos brancos



Sapatos brancos.
Era dos sapatos que meus olhos não saíam, meus olhos zonzos e perdidos, aqueles que passaram a manhã inteira tentando manter o foco, concordando com o que todos eles dizem e tudo o que repreendiam – “não faça isso de novo”, “Meu Deus, você teve sorte”, “por que você fez isso?”. O melhor deles foi o primeiro enfermeiro: fitava-me com aqueles ternos e assustados olhares, quase como se enxergasse um fantasma ou um milagre da medicina moderna em sua frente enquanto eu respondia com sinceridade a todo o questionário que aplicava. Foi engraçado. Foi engraçado ver aquela expressão, pois foi a mais sincera naquela manhã: real expressão de alarme, rosto tenso, incrédulo. Os rostos que vieram em seguida foram todos de estranho julgamento: trataram-me como um louco varrido do qual você não pode chamar de louco varrido porque precisa manter a compostura de seu trabalho. Os olhos de todos esses que vieram em seguida em nada diferiam: louco varrido! Em sincero? Extremamente engraçado. Mas eu estava bem. Eu estava como Drew a caminho da demissão de quase 1 bilhão de dólares. “Estou bem”, “estou bem”, “estou bem”, dizia eu enquanto refletia sobre a filosofia do fiasco ou enquanto o mundo parecia completamente mais lento e minha cabeça confortavelmente pesada, relaxada. Eu estava chapado, o que era engraçado, a julgar pela ironia da coisa – era para estar espumando pela boca, era para ser derradeiro, era para ser uma despedida, era para ser dramático, era para ser um show triunfal, mas limitou-se a ser divertido e aventuresco – porque a brisa foi intensa. Eu era como Drew. “Estou bem”, “estou bem”, “estou bem”.  
Aí enfiaram-me em uma ala. Deram-me até um local para deitar e uma pulseirinha colorida de cor quente, reservada apenas aos casos mais graves. Disseram que era impossível lavar o que quer que estivesse dentro de mim, porque o que quer que estivesse dentro de mim já estava diluído. “Completamente”, dissera o médico brutamontes que igualmente me olhava com aqueles olhos de triste julgamento. Eu era Drew: “estou bem”, “estou bem”, “estou bem”. E por Deus, eu realmente estava: chapado, rindo por dentro e absorvendo aqueles olhares com diversão. No fim, eu só conseguia pensar: vai dar um bom texto, no fim sempre acaba se resumindo a um bom texto.
Vieram os sapatos brancos. Sapatos brancos de cabelos loiros e olhos sutilmente esverdeados. Sapatos brancos de 1,65 de altura. Sapatos brancos que pela primeira vez no dia fizeram-me questionar a natureza dos meus atos – por breves trinta segundos, não mais que isso. Não houve tempo para arrependimentos, era tudo uma questão de diversão: uma viagem planejada que não dá certo porque o x-calabresa do restaurante de estrada traiu o intestino do seu amigo sentado ao lado, deixando um quadro surrealista pintado no carro. A viagem planejada fora pelo ralo, e agora eu tinha uma penca de consequências a lidar: olhares, conversas, decisões terceiras, matrículas forçadas em programas de assistência social e afirmações de que faltava Deus no coração. O fato é que durante toda a manhã, o que me distraiu foram aqueles sapatos brancos. Eram silenciosos e sempre atenciosos quando vinham furar-me os braços e procurar uma veia. Eram compenetrados, mas não menos curiosos – atentos sempre que surgia um comentário ou sempre que relembrava os dados da minha ficha. Vez ou outra arriscavam-se em minha direção, o que eu permitia fingindo estar distante demais para notar. Então esses sapatos brancos saíam para ocupar-se com uma velhinha com articulações pulsando ou adolescentes de vinte e sete anos com medo de agulha. Aqueles sapatos brancos iam de lá para cá, toc-toc discreto e passos deslizantes, suaves, delicados. Havia naqueles sapatos uma tatuagem – exatamente do lado esquerdo, se assim não me falha a zonza memória. Talvez um ramo de flores ou raízes enroladas; talvez uma tribal, talvez borboletas entrelaçadas para cobrir o nome do distante e esquecido pretendente. Havia também na lateral do pulso outra tatuagem: uma palavra ou um nome, uma expressão em latim ou nome da mãe, do gato ou do bondoso e apedrejado Jesus Cristo. Sapatos brancos por uma manhã inteira feitos de detalhes, minúcias as quais eu me prendia com ligeira covardia, pois não estava necessariamente pronto para pensar o que aconteceria quando eu saísse daquela ala. Sapatos brancos que me olhavam não com o julgamento que veio antes, mas com a pena, a dúvida e compassível tristeza: por que? Sapatos brancos que eu por outros trinta segundos desejei buscar o nome, porque agora eu não tinha absolutamente nada a perder ou ganhar lá fora. Sapatos brancos que eu deixei passar, sequer reparando para a costura no jaleco – pois estavam meus olhos zonzos e embaçados demais. Sapatos brancos que eu deixei passar por uma manhã estranha de viagem arruinada pela arte do amigo ao lado.
Sapatos brancos que eu deixaria passar em qualquer outra ocasião, fosse por timidez, fosse por prendimento a outros sapatos.
Sapatos brancos que eu nunca mais voltarei a ver e que, sincera e dolorosamente, eu nunca desejaria ter visto.
Quem dera algumas viagens não fossem interrompidas.