29 de agosto de 2015

Não diga o nome dela




Não diga o nome dela – não profane este leito. Não abra o lixo ao qual você chama de boca para falar dela, de seus cabelos ou sua pele alva. Não toque nela nem com dedos, nem com palavras, nem com pensamentos sujos – não há dignidade em terceiros para tal, não há direito, não há o porquê. Não suje aqueles olhos castanhos com mentiras e suposições, não suje aquelas atitudes por falsas ou adúlteras; não julgue aqueles olhos castanhos por brincalhões. Não diga o nome dela se em sua boca não tocou ou em seu peito não repousou por uma tarde inteira de fugas e esconderijos. Não balbucie aqueles pequenos lábios nem agrida aqueles longos dedos. Não finja entender aquela calmaria da alma e o turbilhão do veneno que as estrelas a concederam no ato de nascer. Não queira compreender o amor pelos inocentes, a intensa busca pela paz e o intenso pavor da guerra, das palavras ruins e dos distúrbios existenciais. Não diga o nome dela se não a conhecer em cada detalhe – a extensão das costas, os braços longos ou as poucas porém estratégicas pintas pelo corpo; a textura da pele e a voz mansa, por vezes chapada e infantil, por vezes madura, firme e enigmática demais; os livros estranhos que mantém na estante; as músicas desconhecidas que escuta; os problemas com a materna mulher que a deu a luz, a desprendida presença do pai; o aroma dos cabelos, o aroma do hálito, até mesmo o aroma entre as pernas quando bem empolgada. Não diga o nome dela se tão pouco conhecê-la como eu tão relativamente a conheço. Não diga o nome dela, tampouco diga que não a amei. Não diga besteiras insanas sobre realidades desconhecidas, não diga mentiras, nem suposições de minhas refrações ambíguas e silenciosas. Sobre ela, não pronuncie uma palavra sequer; sobre mim, cuspa todas. Somente não diga o nome dela, pois ninguém possui esse direito – nem mesmo eu.



28 de agosto de 2015

Loirinha



Saí daquele quarto de fininho, sem que garantisse a ela um último instante para me segurar pelos braços.
Eu já havia engolido calado todas aquelas certezas inconsistentes e havia engolido calado a existência do cara bonitinho com topete bem arrumado que tocava guitarra e ainda era o vocal de uma banda em ascensão. Certo, essa definitivamente era a parte mais legal da história: o cara era realmente legal, tinha até estilo e algumas tatuagens maneiras. Aliás, fora exatamente tudo o que a loirinha dos cabelos lindos e encaracolados havia gritado na minha cara da forma menos direta possível, cheia de provocações e joguinhos. 
Meu Deus, como eu amava aqueles cabelos. Ela descendia de uma família de imigrantes que viera para o país na década de vinte; algumas décadas do bem-bom geográfico no sul do país e subiram o mapa, vindo parar nesta torpe terra de índios renegados ironicamente também com cabelos loiros e olhos azuis – quase ninguém imaginava que os índios daqui tinham essas características e ainda conseguiam dirigir carros em vias que ninguém também imaginava que existiam e que ainda por cima eram asfaltadas. Assim ela veio parar aqui, sempre me matando com aqueles traços que eu tanto amava. Mas aqueles traços que eu tanto amava também eram infantilmente teimosos e ruins de admitir que eu estava louco, eram ruins também em admitir, diretamente, que aquele carinha da banda era melhor que eu. 
Ah, mas ela o fez da pior forma, justificando suas falcatruas com os meus desleixos. E fiquei calado – eu era bom para cacete nisso. Quis nesse momento, pela última vez naquela tarde, acaricia-la as maçãs rosadas do rosto e dizer que tudo estava bem, que eu esqueceria com um pouco de autopiedade e humor negro, que tudo enfim ficaria bem e seríamos o melhor casal que a cidade já tinha visto. Mas ela persistiu com as massacrantes afirmações. Balancei afirmativamente a cabeça – vinha fazendo isso há tanto tempo que chegava a ser um movimento automático. Ela cuspiu e vomitou todo o ódio reprimido, as infantilidades e os jogos vencidos... ela sempre vencia, mais por insistência do que por qualquer outra coisa. E eu tive que mentalmente construir uma mirabolante e longa lista com os itens que faziam de mim um traste, cafajeste, pilantra e arruinador de vidas que era mais baixo que todos os tipos de homens que ela conhecera. Não. Não. Ela particularmente queria me fazer enxergar como eu era um traste, cafajeste, pilantra e arruinador de vidas mais baixo que o carinha que ela “secretamente” havia arranjado nos últimos dois meses. Lembrei-me também de reformular minhas definições de “secretamente” para “toda a porra da cidade e das redes sociais já sabiam e já tinham percebido”. A minha linda dos cabelos loiros até mesmo tinha colocado uma letra de música de autoria do carinha no maldito subnick do chat online e nunca, jamais, em ocasião alguma, havia sequer agradecido pelas porcarias de um milhão de páginas que eu havia tecido em sua homenagem.
Agora, enquanto ela recolhia os destroços de todos os objetos que atirara em minha direção, eu aproveitava para cair fora daquele quarto de fininho. Atravessei todo o interior da casa até a porta da frente, dei adeus aos meus sogros que sempre foram um amor comigo e que não faziam a menor ideia das aventuras românticas e musicais da filha, nem tampouco da Gehenna que seus cabelos loiros e maçãs rosadas de rosto me causaram em todas as esferas possíveis. Eu gostava dos velhos – o seu Anísio até mesmo era tão vascaíno quanto eu e sempre me dava presentes esportivos, um feito e tanto levando-se em consideração que que era eu o “cara que e afetivamente está permitido a fazer amorzinho com sua filha única”. Pobre seu Anísio, juro que eu jamais contaria a ele que de “oficial” eu não tinha nada e que, oficialmente da verdadeira forma mais oficial e oficialmente possível, havia outro marmanjo topetudo, galã e tocador de guitarra e vocalista que fazia esse serviço.
Dei adeus aos velhos e eles, sem muito saberem o que fazer, retribuíram a despedida. Provavelmente escutariam apenas a versão da história em que eu era um filho-da-puta-desleixado-e-sem-coração-sem-sentimento-nenhum-que-nunca-realmente-deu-a-mínima-pra-mim-e-que-me-deixava-muito-mas-muito-muito-mas-muitissimo-magoadinha-e-com-coração-partido.
Puta que o pariu.
A pior parte é que eu amava aquela loirinha, e a segunda pior parte é que a caneca que eu a dera de presente havia feito um estrago e tanto quando se espatifou na minha costa. A dor seria alucinante dali a algumas horas – porque naquele momento meu sangue estava quente demais para sentir, ou talvez fossem apenas os chifres ardendo e queimando e me distraindo da dor de verdade.
Ouvi os gritos da loirinha atrás de mim enquanto eu apressava os passos pela calçada na direção do carro. Em alguns minutos, eu já estava longe demais dali, tentando controlar as batidas do coração que me diziam “vai, acelera contra a porra daquele muro. Que tal aquele poste? E o cruzamento? Vai ser delicioso, meu chapa. Vai ser legal, uma viagem e tanto, vai te deixar ligadão e depois bem relax. Vai. Acelera. Agora. Vai. Vai. VAI!”.
Ao invés disso eu parei no cruzamento, respeitando até mesmo o sinal amarelo no semáforo. Batuquei os dedos sobre o volante e lembrei das aulas de yoga que havia assistido no Youtube (vídeo-aula parte 02 de 47): controlei a respiração, o sangue pulsava, a dor nas costas latejava, o chifre na testa ardia e todos os desaforos daquela loirinha de nariz empinado e que nunca dava o braço a torcer para absolutamente nada me vinham em mente, por todas as vezes que me desculpei por seus insultos e implorei perdão por vacilos que não eram meus. Cacete, eu amava aquela loirinha com maçãs de rosto rosadas. Respirei fundo. Um. Dois. Três.
Aguardei o sinal ficar verde. Antes disso, porém, meu celular vibrou. Era uma mensagem de texto da loirinha. Sinceramente esperava um pedido de reconciliação ou “meu perdoa eu não devia ter jogado a xícara em você, eu te machuquei?” ou “volta aqui, vamos conversar. Por favor” ou simplesmente um bando de xingamentos me chamando de irresponsável, infantil e moleque. Batuquei os dedos no volante enquanto me preparei para ler a mensagem.
Tudo o que dizia nela era:
“Sabe o Fernando da academia? Pois é. Preciso te dizer que também transei com ele, otário!”.
Joguei o celular com calma sobre o banco do passageiro e respirei fundo. Um carinha com topete que tocava guitarra e ainda era o vocalista da banda? Tudo bem, até tinha estilo. Mas o maldito bombadinho da academia, amante de Whey Protein, que só falava de treino e vivia batendo uma para o próprio reflexo no espelho?!
Puta merda.
O sinal abriu e segui em frente.
O pior é que eu amava aquela loirinha.



26 de agosto de 2015

Matinal



Sempre que acordava, virava-se ao Oeste e fazia sua particular oração, era um ritual sagrado e indispensável. Onde quer que estivesse, fosse em casa, fosse sob outros tetos, sobretudo na hora de esvaziar a bexiga, fazia sua oração. Ela era bem específica: “tu andarás na direção contrária ao nascer do Sol, pois não é luz a quem procuras”. E assim ele orava, o vinha fazendo há alguns meses como forma de preparação para algo maior, um sonho tão pertinente que tivera aos quinze, porém que parecera acompanhá-lo pela vida inteira – estivera sempre ali, sussurrando em seu ouvindo, acompanhando cada passo, auxiliando cada pensamento, dando forças a cada questionamento e revolta. Por vezes amparado, por vezes castigando, porém nunca, jamais abandonando. Fosse quem fosse, tivesse o rosto que tivesse, perverso ou não, zombeteiro ou não, estava ao seu lado. Já nem importavam quais as suas verdadeiras intenções, desde que garantisse tudo aquilo que o lado do Sol não o garantiria em uma vida inteira, para ele tudo bem. E vivia em relativa paz por essa razão. No fundo acreditava. No fundo, sob a máscara da descrença, ele acreditava nas forças que o cercavam, mais no “mal” do que no “bem”, embora tivesse profundos questionamentos filosóficos sobre o ponto de vista do que é realmente bom e o que é realmente mal.
Achava hilário o julgamento alheio acerca de seu estilo de vida e, sobretudo, sobre a tristeza latente que sempre o impregnou a alma. Diziam que aquele peso sobre suas costas era a consequência dos falsos deuses a quem louvava. Ele então sorria e assentia, corrigindo mentalmente cada um deles de que não louvava falsos deuses, mas sim apenas a um, e este poderia ser tudo, menos um deus. Ele era mais, de sua própria maneira e com seu próprio estilo. Era mais que carne e osso, era mais que mera fantasia, era mais que uma distorção e muito mais que um mero bode expiatório para abdicar da natureza humana a própria maldade, perversidade e devassidão. Ele era um conceito, uma libertação, uma particular comprovação do falso livre-arbítrio que pregavam.
Sem ninguém saber, todos os dias pela manhã, levanta-se e virava para o Oeste, fazia sua estranha oração e voltava a dormir.
Sentia-se em paz com isso, sentia-se finalmente acolhido, compreendido e, claro, havia todo o desprezo e divertido escárnio – honestamente, a parte mais interessante em todo aquele rito matinal. 


15 de agosto de 2015

Coisa de olho



Era alucinado por ancas magras, pontudas, esqueléticas.
Aquilo não era tara. Aquilo não era coisa de carne, era coisa de olho – admirar, desejar beijar, abraçar, acariciar, sentir, se fundir.
Amava ancas magras, estruturas longas e finas, glândulas mamárias pequenas e bem formadas, por vezes pontudas, por vezes discretas, por vezes abomináveis (já que mesmo as coisas feias possuem em si uma beleza latente, como um Yin e Yang da estética. Admirava também aquele corpo em pé, despretensioso, os cabelos lisos, meio cacheados, meio ondulados, um pouco abaixo dos ombros magros com os óculos-de-gente-boboca. Era alucinado por essas coisas que as mães não alucinavam e os machos no cio não se excitavam. Era alucinado por bundas pequenas e discretas, alucinado por existências aparentemente frágeis, quebráveis a um toque. Era alucinado por passos delicados, idealizados, calçados ou descalços, deformados pelo ballet ou deformados nos calcanhares, com unhas bem cuidadas ou unhas descuidadas, com o esmalte descascando ou simplesmente sem esmaltes. Era alucinado por coxinhas miúdas. Era alucinado por dedos longos e magricelos, era alucinado por ossos aparecendo ou simplesmente por ancas esqueléticas, protuberantes, singelas e desconcertadas que se julgam tão indignas de admiração e beleza. Era alucinado por essas coisas que todos julgavam sem graça, porque não era coisa de tara ou carne, era coisa de olho.
Era admirar, desejar beijar e abraçar, acariciar, sentir, se fundir.