11 de fevereiro de 2015

Desculpas sinceras



Eu deveria me desculpar pelo meu jeito, pelos meus gostos e até pela minha aparência. Eu deveria me desculpar pelos livros que leio, pelas histórias que escrevo, pelos homens que admiro – sempre aqueles estranhos, vis humanos de mentes insanas, porém sensatos diante do tato. Eu deveria me desculpar pelas festas não frequentadas, e até pelas cervejas e refrigerantes negados porque “faz mal à saúde” – e quem dera todos soubessem que realmente faz; é isso durante algum tempo ou uma cama de hospital amanhã. Eu deveria me desculpar pelos centímetros não crescidos, deveria até me desculpar por ficar irritado com as piadinhas feitas. Ah, eu deveria me desculpar pelo meu modo de responder ao mundo, com as ironias e todos os vãos argumentos meramente verbais, sem palavrões, sem xingamentos, sem apelações para violência física e banal – que é o que todos os caras normais fazem; que é o que se geralmente faz e não se pede desculpas. Eu deveria pedir desculpas pelas aspas não colocadas nas frases para indicar ironia, porque eu sou o culpado por não entenderem ironias. Eu deveria me desculpar pelas piadinhas geniais que ninguém entende, e deveria também me desculpar por ter um bom senso de humor que as pessoas julgam por “galassequice”. Eu deveria me desculpar em 90% do tempo por não ser o que os bons jovens de redes sociais fingem que são. Ah, eu deveria me desculpar pelas opiniões ferrenhas que bravejam ao me verem tomar um copo de Coca-Cola Zero (“isso faz mal”) e nem ao menos pensar na possibilidade de rebater com um “põe uma camisinha nesse pau, pare de cheirar cocaína e conclua o ensino médio”, ah, sim, eu deveria me desculpar por pensar em responder isso. Eu deveria me desculpar por não cursar a tão sonhada carreira de Direito, e deveria também me desculpar ao dizer “na verdade, nem quero ser professor”. Eu deveria me desculpar por ter abandonado o Oceano por um sonho mesquinho e utópico em meios às prosas fictícias. Eu deveria até mesmo me desculpar pelos olhos inchados, a aparência eterna de sono e pelo caminhar lento que não optei possuir antes de nascer (porque, acreditem, se houvesse uma escolha, lá de onde todos nós viemos, eu escolheria exatamente o contrário para satisfazê-los). Eu deveria me desculpar por ser pequeno e franzino. Eu deveria me desculpar por tanta coisa que nem lembro mais o porquê do ato, só sei que deveria me desculpar, porque é o que parece certo para acalmar a fúria preconceituosa daqueles que controlam as cordas presas em meus braços e pernas.
Eu deveria me desculpar por tanta coisa, mas não o faço, e até peço desculpas por não pedir desculpas.
No fim, deve ser a minha desculpa mais sincera.


5 de fevereiro de 2015

Ela é poesia



A garota é poesia em cada passo, cada um daqueles passinhos de pés pequenos e branquelos. A garota é poesia mesmo sem saber, mesmo quando escreve aqueles textos tão desconexamente coerentes e coesos, mesmo quando julga a própria literatura inferior, medíocre, indigna do mundo. Ela é poesia até quando joga suas folhas ao vento e mais tarde possui o trabalho de recolher uma por uma, envergonhada pela paranoica sensação de não fazer aquilo direito. Ela é poesia naqueles olhinhos fechados, sobretudo aqueles olhinhos fechados e avermelhados, sempre que me chama ao dizer que fumou um beck dos deuses. Ela é poesia até aí. Ela é poesia com aquelas mãos de pele alva e unhas transparentes; ela é poesia naquela eterna voz de criança; ela é poesia mesmo quando é prosa, e é menina mesmo quando obrigada a ser mulher, numa poética e eterna encenação de vencer o que não há de ser vencido, porque a vitória, nessa ocasião, é mais chata e monótona que a disputa nunca concluída. A garota é poesia até quando ondulações através de minhas prosas não se abatem, porque a poesia dela fica martelando minha cabeça: a poesia de suas ancas magricelas, suas pernas finas e os cabelos lisos e castanhos – na minha visão sempre esvoaçando num fim de tarde ao vento como Johnny Cash e Bob Dylan cantaram em Girl from the North Country.  Ela é poesia por me fazer retornar todas as noites em meio aos teclados e proferir discursos mortos e proibidos, mesmo quando a última afirmação nem sequer existe e não passa de uma mera mentira para ornamentar estas linhas – até aqui ela o é. Poesia por ser tudo o que um dia foi e que um dia jamais será; poesia pela ambiguidade, pela metáfora, pelo arranjo, pela rima e, principalmente, pela dúvida, pelo mistério e pelo aparente desprezo; pela conquista, pela eternidade e pela capacidade singela de perdurar independente de um autor.
 A garota é pura poesia mesmo não sendo mais de minha livre inspiração, afeto ou lembrança.
O poeta morre, mas a obra não.



3 de fevereiro de 2015

Sr. Muckie-Duckie



O senhor Muckie-Duckie tinha imensas olheiras sob os olhos. Aqueles olhos que já não eram naturalmente tão expressivos, muito menos vivos, não possuíam lá tanta vivacidade, e agora tinham olheiras imensas, monstruosas, do tamanho de devoradores de planetas. Pobre senhor Muckie-Duckie, diziam as boas línguas. Ele que um dia fora bem sucedido em seu ramo honesto e modesto de levar a vida, logo ele, o senhor Muckie-Duckie, que acordava cedo todas as manhãs depois de oito horas e meia de sono, ia à padaria, assistia aos jornais e documentários sobre a formação do universo no canal fechado. Pobre senhor Muckie-Duckie, diziam igualmente as más línguas: logo ele, tão sujo e cheio de si, ostentador de universos femininos em sua cama, em seus meios, em seus dedos, em seu ofício. Agora, tanto tempo depois daquela época tão duradoura de sucessos e sorrisos, agora limitava-se a um torcer de beiços, um arquear mofino de sobrancelhas que quase não existia, um dobrar de pés de galinha em volta dos olhos tão escuros, jovens, porém idosos, e, claro, repleto daquelas olheiras agressivas.
Pobre senhor Muckie-Duckie. Pela tentativa de um feito nobre, caiu em desgraças e equívocos, pintou o negro quando quis pintar o branco, tocou uma estridente nota aguda quando quis suavizar uma melodia grave, calma, tranquila e bondosa. “A maldade, sr. Muckie-Duckie”, diriam as boas e más línguas, “está em não fazer o que se deseja”, e foi tudo o que o pobre e velho senhor Muckie-Duckie andou fazendo com aquelas pesadas olheiras. Largou a padaria pela manhã, largou os documentários de como nascem as estrelas – talvez, agora, irônica e literalmente, para “como morrem os planetas” -, deixou até de caminhar pelo sol poente com as ideias do ofício, esquecendo-se do trabalho, das memórias, e de tudo o mais que o fazia ser o velho senhor Muckie-Duckie de sempre.
Em uma terça-feira qualquer, um de seus vizinhos, aquele pirralhinho filho da Marta e do Jurandir, vai chutar uma bola no jardim do senhor Muckie-Duckie. O senhor Muckie-Duckie gritará um palavrão, tomará uma tesoura entre os dedos e fará o serviço que o ânimo o ordenou. Pobre menininho, vai chorar e reclamar com os pais. Marta vai abraçá-lo e xingar o algoz. Jurandir vai no máximo baixar os olhos e fingir que nada aconteceu.
Jurandir sabe que a culpa não é do senhor Muckie-Duckie.
São aquelas olheiras – malditas olheiras.